sábado, 4 de janeiro de 2014

Espiritismo e cultos afro-indígenas: continuamos iguais nas diferenças


 A doutrina espírita continua sendo um influente neutralizador de dogmas e superstições

 
As diferenças de ideias e práticas entre Espiritismo e religiões afro-indígenas são históricas e não apenas conceituais. Mesmo que haja um diálogo de conhecimentos e convívio social, as diferenças persistem nas atividades particulares de cada uma das agremiações, não como intransigência conflituosa e sim como reflexo da diversidade cultural e de objetivos dos seus adeptos.

Há uma disputa ou competição entre essas duas correntes?

Existe, sim, não por parte dos espíritas, mas geralmente de alguns segmentos que não são espíritas, porém se utilizam de práticas espíritas como conhecimento e também como legitimação e aceitação social.  Há atualmente grupos não espíritas que se valem dos conhecimentos espíritas para melhorar suas práticas mediúnicas e doutrinárias, porém não se sentem ameaçados ou diminuídos, nem demonstram qualquer sentimento de antipatia e hostilidade competitiva para com o movimento e a identidade espíritas. O que percebemos também é que existe uma tentativa forçada de equalização de conceitos e práticas, bem como ressentimentos da parte dos praticantes de cultos afro-indígenas, atribuídos à não aceitação por parte dos espíritas de suas práticas e manifestações no ambiente espírita.

Ainda persiste, em diversos segmentos afro-indígenas, um certo sentimento de animosidade e rancor para com a Doutrina Espírita. Isso não vem somente das concepções doutrinárias em si, mas das pessoas, encarnadas e desencarnadas, que compõem tais agremiações.  A fundação da umbanda, bem como uso do candomblé como oposição ideológica ao Espiritismo não foi uma simples contraposição teórica ou doutrinária. Surgiu de conflitos sobre as diferenças de práticas, segundo relatam os próprios  historiadores desses segmentos, mas também estimulada como confronto por algumas inteligências do Além ainda marcadas pelas recentes mágoas da escravidão imposta pelos europeus sobre os africanos e indígenas;  funda-se talvez  também  na antiquíssima ideologia das raças, uma rivalidade entre a raça negra, dominante nas primeiras eras da Humanidade, pela força da paixão e pela imposição do medo, contra a raça branca, que se impôs pelo espírito de autonomia e racionalidade diante dos seus adversários naturais. Essas linhas e tendências também seguem o perfil e as características das faixas vibratórias ou círculos espirituais onde habitam e atuam essas entidades. Aí, sim, identificamos diferenças de superioridade ou inferioridade segundo os princípios da hierarquia ou categoria dos espíritos definida por Allan Kardec. Sem esse conhecimento é praticamente impossível tocar no assunto das nossas diferenças e semelhanças.

Quanto aos conflitos e rivalidade, devemos lembrar que nem a mistura de raças e costumes, nem as iniciativas pacificadoras de confraternização conseguiram diluir os efeitos desse choque primitivo, muito por causa da sucessão de atos vingativos e reações violentas entre esses espíritos mais antigos e seus descendentes, pelas tramas espirituais que se construíram entre eles.

Historicamente a grande e longa Era que hoje governa o mundo, depois da revolução agrícola, ainda é o da indústria, da ciência experimental e aplicativa, do território mercadológico, que pertence à etnia branca e as demais etnias que se adaptaram ao seu modo de vida capitalista.  Etnias que se degeneraram ou marginalizaram-se nesse contexto, incluindo alguns povos semitas da região da Mesopotâmia e da Índia, não conseguiram se firmar diante da civilização tecnológica. O compromisso dos ingleses em extinguir a escravidão pelo liberalismo não foi suficiente para evitar novos confrontos e abusos de poder. 

Em muitos núcleos, brancos e negros confraternizaram e trocaram experiências, sobretudo de conhecimentos espirituais; noutros predominou a troca de farpas e arrogâncias. Poucos sabem que até mesmo a figura simbólica e diabólica de Satanás, ora como entidade negra brotada das florestas e desertos, ora como entidade branca caída dos céus, foi um milenar jogo de provocações entre essas duas tendências etnológicas. Ambas tentando, pelo maniqueísmo, mostrar quem era do Bem ou do Mal, etnicamente puras ou impuras.  Tanto a etnia negra como a etnia branca eram puras nas suas origens, assim como amarelos e vermelhos. O que desfez essa pureza cultural foram os embates bélicos e os sucessivos erros de escolha de caminhos e destinos feitos pelos líderes dessas coletividades, dominados pelo personalismo ou pela vingança.

Quando o Espiritismo surgiu na Europa no século XIX, como força intelectual científica, a expor, revelar e explicar os fenômenos tidos como sobrenaturais, em busca de uma síntese comum, imediatamente surgiu a reação das forças opositoras, juntamente com as igrejas, tanto dos ocultistas brancos das tradições místicas exclusivistas da Europa, como também dos negros, por meio dos seus descentes nas colônias da América. Para eles o Espiritismo surge como neutralizador de dogmas e meias verdades, diminuindo significativamente o poder social dos magos e sacerdotes.

No Brasil o confronto não foi diferente e partiu do ressentimento dos núcleos espirituais primitivos com esse espírito passional e vingativo, alegando discriminação e preconceitos contra seus filhos. Assim nasceu a umbanda, miscigenada e mesclada; e assim ainda se afirma o candomblé em sua originalidade africana; ambas ainda muito envolvidas pelo sincretismo com as práticas ritualísticas católicas. Isso em nada as desabona, pois muitos candidatos a espíritas ainda se sentem fascinados pelas seduções místicas dos cultos dogmáticos tentando dar ao espiritismo algumas marcas das suas antigas crenças, inclusive pela via mediúnica.

E ainda é assim, para nós espíritas, espiritismo, umbanda e candomblé são coisas bem distintas entre si, embora isso ainda cause intranquilidade e confusão entre seus usuários e praticantes que não conhecem nem reconhecem autenticamente suas respectivas doutrinas e culturas. O embate entre a passionalidade e racionalidade não significa superioridade ou inferioridade entre elas, mas somente a imposição das marcas mais profundas de personalidade de cada uma. Nossas escolhas devem respeitar a existência, a diferença e a convivência desses princípios.

O povo brasileiro, ainda desinformado e pouco afeito ao estudo e à disciplina, sofre com essa diversidade quando quer escolher um caminho espiritual e servir seus semelhantes. Mas também, na sua ingenuidade e malícia, se aproveita disso para exercer sua mais espontânea falta de responsabilidade e compromisso, querendo apenas ser servido, em qualquer espaço sagrado onde lhe é permitido entrar e obter sua satisfação mística, bem como o conforto da esperança.

 Fazer o quê, senão acolher e tentar educar.

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