sábado, 28 de novembro de 2009

Combustível da violência

Degas: O Absinto, 1876


Muito antes do voluntariado se tornar referência no Terceiro Setor, os cursos do CVV já eram obrigatórios para assistentes sociais da prefeitura de São Paulo e muito recomendados
para os trabalhos de relações humanas. Durante anos assistimos a vários programas de seleção desses voluntários e um que jamais esquecemos foi o realizado na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, no início da década de 1980. Naquela época havia no programa uma aula sobre alcoolismo e toxicomanias , cuja idéia educativa era sempre “entender para melhor compreender”. O expositor foi um conhecido advogado e também voluntário do posto do CVV paulistano da rua Abolição e que naquela noite nos brindou com duas coisas que nunca tiramos da memória: a música de Vinícius de Moraes e Toquinho, “Um homem chamado Alfredo” ( O meu amigo do lado se matou de solidão... porque ninguém o queria, ninguém lhe dava atenção...); e a associação que ele fez entre drogas e violência ao nos ensinar que os usuários de haxixe da região da Turquia eram chamados de “haxixim” e que dessa palavra derivou o termo utilizado no Ocidente para definir a figura do “assassino”.

Desde então as coisas parecem ter piorado, quando se trata do consumo de drogas lícitas e ilícitas, cada vez mais precoce entre jovens e crianças, sempre com a reconhecida omissão e permissão dos adultos.

A simbiose psíquica entre encarnados e desencarnados no consumo de substâncias que causam dependência química sempre foi conhecida entre os espíritas e nas religiões dogmáticas o problema é habilmente transferido para a responsabilidade de forças demoníacas (não deixam de ser). Os relatos mediúnicos sobre esse assunto (sobretudo de André Luiz e Yvone Pereira) são de um realismo apavorante e mesmo assim, muitos de nós insistem em brincar com as nossas tendências e fraquezas. Nossas idas ao supermercado sempre são aventuras de sedução e resistência quando passamos pelas gôndolas de bebidas alcoólicas, sempre repletas de atraentes variedades e ofertas. Nossa família, de ambas partes, sempre teve uma queda para o alcoolismo e para a boemia. Um dos nossos bisavós (era húngaro, músico e depressivo) – tinha um alambique particular e, depois de desencarnado, sempre acompanhava um dos nossos irmãos que durante a juventude foi um notório beberrão. Segundo nossa mãe, na gravidez de outro irmão nosso, ela sentia um irresistível desejo de beber vinho e a criança que nasceu dessa longa agonia desde cedo demonstrou forte atração para o vício. Aos seis anos, no sítio do nosso outro avô, tomou escondido uma garrafa inteira de Cinzano, que era também um vício do vovô, sendo os dois muitos afeiçoados. Esse nosso irmão já nasceu alcoólatra e milagrosamente parou de beber aos 30 anos ao voltar de um coma. Temos um amigo que, apesar de ser trabalhador e muito afetuoso, é um beberrão inveterado. Devoto de nossa Senhora de Aparecida, vivia nos dizendo que os Espíritos não existiam. Já sofreu vários acidentes de carro por estar embriagado e nós mesmos já fomos socorrê-lo em dois deles nos quais os automóveis foram totalmente destruídos e nos quais saiu praticamente ileso. Ele atribuiu a sua sorte ao Terço que carrega no retrovisor do carro, mas continua bebendo sem o mínimo cuidado consigo e com os outros. Esse mesmo amigo ao vir em casa ficava admirado com a quantidade de livros e o interesse da nossa família pelas leituras. A esposa dele reclamava que os filhos não gostavam de ler e nós não perdíamos a oportunidade de dizer que eles seriam futuros bons bebedores porque a estante da casa deles era forrada de garrafas de whisky. Ela concordava e ele ficava quieto, sorrindo cinicamente.

Outro dia tive desejo de comprar um garrafa de conhaque. Já vinha com esse desejo sendo cultivado há algum tempo. Comprei. Coloquei em cima da geladeira esperando uma frente fria para saboreá-lo “socialmente”, em pequenas doses. Nesse ínterim tive um sonho impressionate no qual via sob um lago muito amplo muitas pessoas e animais mortos por caçadores. Todos, pessoas e bichos, estavam de olhos abertos, porém estáticos. Havia também muitas placas de trânsito submersas, amarelas e enferrujadas. Acordei agoniado. Fui até cozinha peguei a garrafa de conhaque e despejei-a na pia. “Cena típica dos alcoólatras em conflito consigo mesmos”, diriam os especialistas. Estão corretíssimos. Mas naquele sonho tinha algo mais que a vã filosofia e cética medicina ainda estão longe de compreender.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Oportunidade no momento certo

Certa ocasião, no final da década de 1970 , os fundadores de uma nova e conhecida entidade federativa espírita receberam uma mensagem dos Espíritos sobre os rumos que poderiam tomar nas suas novas experiências doutrinárias. Eles haviam solicitado ajuda sobre como atuar no campo da comunicação de massa, pois ansiavam atender o grande público-multidão que então já se formara nas principais metrópoles brasileiras. Não tinham muitos recursos e os meios mais conhecidos como rádio e TV ainda eram praticamente inacessíveis nessas condições. A mensagem deveria esclarecer definitivamente o problema. Mas ela veio curta e objetiva:

“Preparem-se, no momento certo vai aparecer a oportunidade que todos aguardam.”
Certamente o conteúdo não agradou à todos, sobretudo os que esperavam uma indicação mais específica do poderia acontecer.

Tempos depois, em plena fase de expansão, o novo movimento doutrinário recebe a notícia de que já estava disponível para concessão um meio alternativo de comunicação. A informação foi dada por um dos próprios membros do grupo que possuía larga experiência em comunicação jornalística e publicitária. Era necessário reunir uma pequena quantia para conseguir a concessão pública e aguardar as regras que seriam brevemente definidas pelos órgãos oficiais reguladores. Era preciso agir rápido e aguardar.

Foi então que , a partir daquele instante, o tom das reuniões do grupo foi se modificando. Pequenas divergências, antes consideradas apenas diferenças estratégicas, passaram a tomar corpo de posicionamento pessoal. Cresce rapidamente a disposição para o afastamento dos pontos convergentes entre dois pólos nitidamente competitivos. Nem mesmo a intervenção experiente de um antigo líder comum a todos eles conseguiu diluir a contenda. Mais tarde decidiram pela cisão e cada um seguiu o seu caminho de idealismo e novos projetos.
Mas que tipo de comunicação alternativa poderia ser aquela?
Tratava-se então de uma nova categoria técnica ainda desconhecida e quase sem uso pelas emissoras brasileiras. O novo modelo emitia ondas em frequência modulada e por isso vinha sendo chamado de rádio FM. Em menos de três anos o sistema explodiu nas grandes metrópoles e o preço das concessões também foram para as alturas.
Poucos se lembraram que os Espíritos tinham realmente falado das rádios FM e que na época da mensagem chamaram-nas discretamente de “oportunidade no momento certo”

Revista Veja, edição de 26 de junho de 1984 - Imagem: Midiacliping

sábado, 7 de novembro de 2009

O fim da religião e o retorno do sagrado

"Angelus", por Jean François Millet, 1857

Renato Ortiz tem sido um dos pensadores mais lúcidos e cautelosos da nossa sociologia contemporânea. Desprendido das visões tendenciosas e dos vícios analíticos ideológicos que marcaram a geração anterior à sua, ele reflete sobriamente sobre a temáticas que tradicionalmente eram rotuladas ou rejeitadas pelos intelectuais acadêmicos, como por exemplo a religião e o sagrado. Para aqueles que acham que o Espiritismo não possui nenhuma relação com a religião e também para aqueles que, num outro extremo, reduzem e transformam o Espiritismo num simples objeto de culto religioso (como diria Herculano Pires “Num bezerro de ouro”, ao comentar o fanatismo dos protestantes em relação à Bíblia), nada como um olhar crítico de quem está de fora e, portanto, muito mais isento do que qualquer um de nós. Das suas Anotações sobre Religião e Globalização” (Revista Brasileira de Ciências Sociais- Vol.16, nº47, outubro de 2001) recolhemos o trecho abaixo, pois que fala inclusive do contexto e das circunstâncias nas quais os Espiritismo foi fundado no século XIX. Pena que não é possível publicá-lo na sua versão integral.

“A relação entre religião e modernidade foi amplamente discutida pelos sociólogos. Desencantamento do mundo, secularização das instituições e das relações sociais, separação entre Igreja e o Estado, emergência da ciência e da técnica enquanto saberes secularizados, enfim, perda da centralidade da religião como elemento de organização da sociedade como um todo. Muito desse debate, quando mal formulado, levou a certos impasses, como a discussão sobre “o fim da religião” no século XIX, e hoje, a meu ver, do “retorno do sagrado”. Não há dúvida de que uma leitura evolucionista do progresso levou inúmeros pensadores a imaginar a religião com um anacronismo. Diante do avanço da ciência, da técnica e da secularização, ela teria os seus dias contados. È bem verdade que o século XIX produziu também alguns sincretismos entre religião e progresso procurando mesclar pólos aparentemente tão díspares, penso em Auguste Comte e seu culto da Humanidade, e nos “fazedores de deuses”, como dizia Lênin, de Lunacharski e Gorki durante a revolução bolchevique. Mas certamente predominou uma visão simplificadora e menos sutil, conferindo à técnica, não uma primazia, mas o poder de eliminar definitivamente as crenças religiosas. No entanto, é suficiente estarmos atentos para compreender que o advento da sociedade industrial não implica no desaparecimento da religião, mas o declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônicos de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de sua atuação a limites mais estritos, mas não a apaga enquanto fenômeno social.. Nessa perspectiva, o debate sobre o desparecimento dos universos religiosos é simplesmente inconseqüente. Basta lembrar que Durkheim, quando discutia a supremacia da ciência sobre a religião, dizia que essa última de fato, do ponto de vista explicativo, perdia terreno para o pensamento científico, porém, como a ciência era para ele uma “moral sem ética”, isto é, um universo interpretativo incapaz de dar sentido às ações coletivas, o potencial das religiões, como forma de orientação de conduta, de uma ética de ação no mundo, permanecia inteiramente válido. Na verdade, a modernidade desloca,sem eliminá-lo, o lugar que ela ocupava nas sociedades passadas. O fim do monopólio religioso não coincide, portanto, com o declínio tout court da religião, sua quebra significa justamente pluralidade, diversidade religiosa, seja do ponto de vista individual, seja coletivo (em termos lógicos não há pois necessidade de imaginarmos “o retorno” de algo que nunca expirou). A sociedade moderna, na sua estrutura, é multireligiosa.”