sábado, 31 de outubro de 2009

Sálem e Hydesville

O episódio das Bruxas de Sálem é um dos capítulos mais interessantes da história social da mediunidade, marcada por fenômenos aparentemente anormais e nos quais as pessoas portadoras de faculdades psíquicas são combatidas pelas forças dogmáticas e, quando expostas em público, altamente hostilizadas pela massa em histeria coletiva.

Para os espíritas, cujo olhar diferenciado nos conduz a uma leitura mais tranqüila e não menos curiosa desses fenômenos, Sálem não foi somente um fato isolado, mas talvez a raiz mais remota dos acontecimentos de Hydesville, ocorridos 156 anos mais tarde. Não estranharíamos se identificássemos em 1848 os mesmos protagonistas de 1692, alguns em papéis invertidos e outros exercendo as mesmas funções que lhes marcaram gravemente as consciências. Os caluniadores, os acusadores e os omissos em Salem voltam ao cenário de Hydesville para ajustar contas consigo mesmos, removendo parcialmente os efeitos do crime que haviam cometido anteriormente. Alguns desses agentes históricos, que tiveram comportamento exemplar em 1692, agindo com equilíbrio e senso de justiça, talvez se dispuseram a voltar espontaneamente para ajudar os antigos criminosos nas provas dolorosas de Hydesville e também contribuir para o advento da nova revelação que se desdobraria da América para os quatro cantos do mundo.

1692 entrou para a história social da intolerância religiosa e 1848 também teria a mesma finalidade histórica, com a diferença de que este último estaria relacionado a um contexto muito mais amplo e de grande repercussão universal, como planejaram os Espíritos Superiores.

As irmãs Fox, mediunidade de prova a serviço da nova revelação

As Bruxas de Sálem


"É uma certeza que o demônio apresenta-se por vezes na forma de pessoas não apenas inocentes, mas também muito virtuosas". Rev. John Richards, século XVII


Mister Parris, o pobre reverendo de Sálem, estava exasperado. Betty, a sua única filha de apenas nove anos, acometida por uma série de estranhos espasmos, jogou-se petrificada sobre o leito, negando-se a comer. Naquela perdida cidadezinha, ao norte de Boston, não existiam muitos recursos além de um velho médico que por lá se perdera. Chamado para diagnosticar a doença, atestou para o aterrado pai que menina estava era enfeitiçada e que nada lhes restava a fazer além de uma boa e sincera reza. A conclusão do doutor correu de boca em boca e em pouco tempo os pacatos habitantes do pequeno porto tomaram conhecimento de que Satanás resolvera coabitar com eles.

Simultaneamente outras garotas, as amiguinhas de Betty, começaram a apresentar sintomas semelhantes aos da filha do clérigo. Rolavam pelo chão, imprecavam, salivavam, grunhiam e latiam. Foi um pandemônio. Pressionado a tomar medidas, Parris resolveu chamar um exorcista, um caçador de feiticeiras, que prontamente começou sua investigação.

No século XVII poucos punham em dúvida a existência de bruxas ou de feiticeiras porque uma das máximas daqueles tempos é de que "é uma política do Diabo persuadir-nos que não há nenhum Diabo".
Interrogadas por Cotton Mather, que iria se revelar uma versão americana do inquisidor-mor Torquermada, as garotas contaram que o que havia desencadeado aquela desordem toda foram uns rituais de vodu que elas viram Tituba fazer. Tratava-se de uma escrava negra que viera das Índias Ocidentais e que iniciara algumas delas no conhecimento da magia negra. Durante o último longo inverno da Nova Inglaterra, ela apresentara várias vezes os feitiços para uma platéia de garotas impressionáveis. Educadas no estreito moralismo calvinista e no ódio ao sexo que o Puritanismo devota, aquele cerimonial animista deve ter despertado as fantasias eróticas nelas. Provavelmente culpadas por terem cedido à libido, ou apavoradas por sonhos eróticos, as garotas entraram em choque histérico. Seja como for o caso merecia ser ouvido num tribunal. Toda a cidadezinha se fez então presente no salão comunitário.
Quando colocadas num tribunal especial, presidido pelo juiz S.Sewall, e inquiridas pelos juizes Corwin e Hathorne, as meninas começaram a apontar indistintamente para várias pessoas que estavam na sala apenas como curiosas. O depoimento mais sensacional foi o da escrava Tituba, que não só confessou suas estranhas práticas como afirmou que várias outras pessoas da comunidade também o faziam.
A partir daquele momento a cidadezinha, que já estava sob forte tensão, se transformou. Um comportamento obsessivo tomou conta dos moradores. Uma onda de acusações devastou o lugarejo. Vizinhos se denunciavam, maridos suspeitavam das suas mulheres e vice-versa, amigos de longa data viravam inimigos. Praticamente ninguém escapou de passar por suspeito, de ser um possível agente do demônio. Não demorou para que mais de 300 pessoas fossem acusadas de práticas infames. O tribunal que entrou em função em junho de 1692 somente parou em outubro. Resultou que dezenove pessoas foram enforcadas.
Deteve-se a execução quando as denúncias envolveram figuras eminentes da colônia, tal como a esposa do governador de Massachusetts e o pastor Samuel Willard, presidente do Harvard College (*). Enquanto a arraia-miúda foi enclausurada, acusada de práticas escusas, poucos se indignaram. O basta naquilo tudo foi dado quando os dedos dos fanáticos ousaram apontar para a elite local. Ainda em 8 de outubro de 1692 circulou uma carta redigida por um intelectual da região, Thomas Brattle, que se horrorizara com os enforcamentos, revelando a loucura coletiva que tomara conta dos aldeãos. Segundo Perry Miller, que estudou as idéias que circulavam pelas colônias americanas daquele século, a letter de Brattle teria sido o primeiro documento iluminista produzido na América do Norte, pois criticou veementemente os prejuízos do fanatismo religioso. Entre outras coisas Battle escreveu: "temo que os anos não apagarão esta desgraça, esta nódoa que essas coisas lançaram sobre nossa terra". E os processos dos endemoniados de Salém assim como começaram, num repente terminaram.
História - por Voltaire Schilling

sábado, 17 de outubro de 2009

O Deus dos cínicos e dos medrosos

Com o seu novo livro, Caim, José Saramago volta a infernizar a vida dos religiosos. É a especialidade dele, um descrente convicto e profissional. A convicção não é verdadeira, é claro. Trata-se, segundo a teoria dele mesmo, de um mecanismo de defesa do “cérebro”, em operação idêntica àquela que mantém a crença em Deus. Suas declarações são desconcertantes e provocam a irritação dos mais emotivos e sectários, que no fundo no fundo não possuem fé suficiente para sustentar essa opinião tão delicada em tempos pós-modernos. Minha filha de 7 anos já me disse que não tinha certeza se Deus existe. Fiquei chocado por alguns segundos e logo tratei de me posicionar dizendo a ela que essa idéia não está à altura de seres humanos como nós e que certamente um dia vamos compreender Deus de forma diferente de tudo isso que vem sendo ensinado sobre Ele. É o que aprendemos no Livro dos Espíritos, que para muitos espíritas ainda funciona – não deveria- como um “catecismo”. O Deus que Saramago tanto detesta realmente só existe na mente dos dogmáticos, sectários e hipócritas. É o Deus do clero, de todas as religiões que tratam o assunto com estupidez e política. Esse Deus é imoral e morreu no século XIX, condenado 100 anos antes pela pena de Voltaire.
O Deus do Espiritismo não é o mesmo Deus da Bíblia vertida para os ocidentais e da cultura dogmática judaico-cristã desenvolvida pelas teologias católica e protestante. Veja a coragem da pergunta de Kardec e a transparência da resposta dos Espíritos. O diálogo que abre o Livro dos Espíritos é direto, franco e não há submissão ou adoração supersticiosa por parte de Kardec. A conversa é dinâmica e os Espíritos estimulam ainda mais a curiosidade, embora recomendem a prudência filosófica. Nosso Deus é o Deus de Zênon(Logos Spermatikos) Sócrates (Pneuma), o de Spinoza e de Einstein ( O Universo pensando). Nosso Jesus também não é mesmo. Nosso Cristo é o educador, o libertador de consciências e não o salvador absoluto e que assumiu irresponsavelmente as nossas responsabilidades sobre os nossos destinos.
Com o advento de novos conhecimentos científicos e a ampliação da nossa capacidade de ler esse novo universo, a nossa concepção sobre Deus vai sofrer mudanças irreversíveis. Nosso respeito pela Divindade vai adquirir um novo sentido e a nossa conduta religiosa um novo significado. Uma coisa é certa: nos ensinaram muitas coisas absurdas sobre Deus e esqueceram de ensinar como manter ideologicamente vivas essa coisas que já nasceram mortas. Precisamos reaprender a ver e adorar a Deus. Os Espíritos já nos ensinaram os primeiros passos. Muitos ainda não conseguem andar sozinhos nesse terreno novo da incerteza. Enquanto isso fazemos preces amedrontadas e com muitas chantagens. Mas já estamos aprendemos a rir das nossas criancices teológicas. Isso é muito importante.

sábado, 10 de outubro de 2009

35 anos

Crepúculo em Cubatão, por Bob Wolfenson

Este ano, em março, fez 35 anos que saímos de Epitácio para morar na Baixada Santista. Achamos que iríamos morar em Santos, mas na verdade fomos para São Vicente, cidade vizinha, tão vizinha que o turista comum não percebe quando passa pelas duas divisas entre elas (na praia do José Menino e no monumento dos tambores , na zona noroeste. Fomos morar num sobradinho na rua Uberaba e depois mudamos para uma casa maior, na rua Rio de Janeiro, onde ficaríamos nos próximos dez anos, entre 1974 e 1984. Seria uma década revolucionária em nossa família, marcada por experiências incríveis e cheias de transformações. Nossa mãe teve essa intuição bem antes e não perdeu a chance quando surgiu a oportunidade. A vida em Epitácio havia atingido o limite para uma família grande e de poucos recursos: cinco filhos jovens com muitos sonhos, mas sem muitas perspectivas. A idéia inicial era irmos para São Paulo, como acontece com a maioria das famílias que passam pela mesma crise, mas optamos por uma cidade que não fosse tão grande como a Capital e não tão pequena como Epitácio. Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e Praia Grande formam uma grande região composta por cidades medianas. Era a escolha certa e o lugar perfeito. Saímos na madrugada e chegamos no litoral perto do meio dia. Parte da nossa mudança foi levada numa camionete do Jorge Okada. No dia anterior, no feriado municipal de 27 de março de 1974, ficamos no jardim até quase meia noite nos despedindo dos amigos. Estávamos todos eufóricos e apreensivos. Esse sentimento permaneceu durante toda aquela semana de novidades. Bem diferente do que é hoje, São Vicente era muito pequena e funcionava como cidade dormitório. Trabalhar, estudar, fazer compras, tudo era feito em Santos – no Gonzaga ou no centro velho, próximo à zona portuária. Andar nos coletivos era um excelente programa porque todos circulavam a grande Ilha de São Vicente, que inclui Santos e São Vicente. O circular 7 ia pelas praias em direção ao ferry-boate e o circular 8 fazia o sentido inverso. Alguns deles percorriam os canais principais (1 e 2) em direção à Vila Belmiro e ao túnel. Tudo era muito fascinante. Sempre escolhíamos o percurso mais longo, para aproveitar a paisagem. O cheiro de mar e da vegetação litorânea eram muito fortes e completamente diferente de tudo que o nosso olfato conhecia. Além dos pontos turísticos, nossa diversão preferida era ver a entrada dos navios na barra da Ponta da Praia. Navios enormes, de todas as nacionalidades. Também gostávamos muito das visitas aos vasos de guerra e submarinos, nacionais e estrangeiros. Num deles fomos visitar o jovem marujo epitaciano Salvador Miazaki. Tudo isso ia se acumulando no baú das nossas emoções e não víamos a hora de retornar para Epitácio e contarmos tudo em detalhes para os colegas. Isso aconteceu pela primeira vez no mês de julho – que na época estava bem frio. Uns parentes baianos da minha avó tinham sofrido a perda do filho mais velho ( que morava no Morro do São Bento, juntamente com dois irmãos) e fizeram essa viagem de volta com a gente. Levei na bagagem um vidro com água do mar, para mostrar para o Gilmar Saraiva. Em pouco tempo já havíamos adotado um sotaque santista (o abusivo e incorreto uso do “Tu” antes das frases –Tu vai, Tu foi, etc) , logo motivo de muito sarro e indignação dos colegas. Quando chegamos fomos logo procurar a turma no campinho de futebol, num terreno na rua Cuiabá, em frete a Serraria do Lopes. A manhã estava deliciosa, fria e ensolarada, e a maioria da garotada usava aquelas japonas de nylon “dupla face”. A irmã da minha avó Maria, mãe do rapaz morto em Santos, veio para morar em Epitácio. Elas não se viam há mais de 40 anos. Foram morar na chácara do meu avô, na Estrada Boiadeira Norte, próximo da rodovia marginal. Terminadas as férias, voltamos para o litoral, agora com outros olhares e outros projetos. Tudo o que aconteceu certamente daria um livro de memórias com muitos capítulos. Novas experiências, novos vizinhos, novos amigos. Momentos difíceis e coisas maravilhosas, inesquecíveis. De todas elas, a que marcou mais foi a ajuda espiritual – numa reunião de Evangelho - que recebemos de uma entidade feminina desencarnada em Epitácio. Velha amiga da família, ela nos deus conselhos e consolos preciosos nas horas incertas. Estávamos nos preparando para uma segunda etapa de mudanças. Na década seguinte – entre 1984 e 1990, fomos todos para São Paulo para complementar essa primeira fase de transformações.

Vista da orla de São Vicente e Santos a partir da praia do Itararé


Quando fomos morar em São Vicente tinha eu 12 anos de idade. Éramos cinco irmãos e mais um jovenzinho de três meses chamado Natalino, cujo irmão gêmeo Natal havia desencarnado por causa de complicações do parto. Enquanto a mãe estava no hospital lutando pela vida, Natalino e os outros seis irmãos foram colocados sob os cuidados dos nossos familiares até que as coisas voltassem ao normal. Jamais voltariam. A mãe de Natalino também desencarnou. O pai, um oleiro ribeirinho do Porto XV, em completa situação de miséria, recolheu os filhos e voltou para a sua batalha diária. Amigos nossos tentaram adotar os irmãos mais novos, mas o pai não cedeu. A irmã mais velha cuidaria dos menores. Natalino foi o único que não voltou. Para a nossa surpresa, o pai disse que, se quiséssemos ficar com a criança, ele deixaria de bom grado. A nossa mudança para o litoral paulista já estava decidida e não havia nenhum plano de adoção para Natalino. Dias antes da mudança nosso pai chegou em casa com alguns documentos para nossa mãe assinar. Estava consumado. Natalino era o mais novo membro da família. Ele havia nascido em 23 de dezembro de 1973 e na tarde de 28 de março do ano seguinte já estávamos descendo pelas curvas da Via Anchieta em direção à Baixada Santista. Tudo foi muito rápido e assustador para os adultos, porém muito emocionante para as crianças. Nossos pais eram funcionários públicos e optaram pela mudança para aguardar uma nova orientação sobre o futuro profissional deles no Ministério dos Transportes, junto ao porto de Santos. As coisas seguiram o seu curso, mas nossa mãe, de vez enquando, nos dizia que um Espírito feminino muito luminoso visitava Natalino durante a noite. Nossa mãe, filha de retirantes nordestinos, tinha sido criada por Dona Manoela Borges, uma senhora que mais tarde tornou-se madrinha de todos nós e que também havia desencarnado dois anos antes do nascimento de Natalino. Ela era filha de um índia xavante com um desbravador vindo da região de Porto Feliz. Certa ocasião, visitando um tia-avó numa viagem ao interior, nossa mãe recebeu dela, sem que estivesse esperando, a informação que há alguns anos buscava: “Esse menino é parente da Dona Manoela, é o pai dela. Você tem uma dívida com ela e esse menino precisa muito da sua ajuda". Também ficamos sabendo depois que a nossa vinda para São Vicente não tinha sido uma simples escolha. Tínhamos coisas importantes para aprender e realizar na antiga Vila onde em outros tempos tínhamos adquirido as primeiras lições do Evangelho pelas mãos dos jesuítas.



Mapa paulista do final do século XIX: a região oeste permaneceu "milagrosamente" intacta por mais de 300 anos.


Séculos mais tarde, quando a região oeste de São Paulo estava sendo ocupada pelos mineiros (antigos paulistas ou vicentinos), o Capitão Francisco Whitaker, por ordem do governador de São Paulo, lançou-se numa expedição pelos rios Tietê e Paraná com a missão de fundar um porto na divisa com Mato Grosso, na região inóspita do Pontal do Paranapanema. A expedição foi organizada nos mesmos moldes das antigas monções, caravanas de batelões fluviais em busca do sertão distante. A missão foi realizada com êxito e em primeiro de janeiro de 1907 eles desembarcaram na barranca paulista do Paraná e ali fundaram o Porto Tibiriçá. O empreendimento era uma preparação para receber gado de corte da região mato-grossense de Vacaria , que seria conduzido por uma estrada boiadeira entre Tibiriçá e Indiana, a estação mais próxima da Ferrovia Sorocabana, distante 105 quilômetros. A Madrinha Manoela sempre nos contava que o pai dela, seu Daniel, estava na expedição histórica de Francisco Whitaker, o último bandeirante paulista e descendente de vicentinos. São Vicente tinha sido a primeira vila a ser fundada na Capitania , em 1532, e o Porto Tibiriçá a última. Eles haviam completado um ciclo de quase cinco séculos (475 anos). E nós, tibiriçaenses, há exatamente 35 anos, estávamos de volta, ao som das ondas e do cheiro da maresia, agora para aprender na Mocidade e na Escola de Aprendizes do C. E. Irmão Timóteo as lições renovadoras do Espiritismo. Dois anos antes da nossa chegada, em 1972, o grande médium e escritor italiano Pietro Ubaldi despedia-se de São Vicente, cidade que escolhera viver os últimos dias da sua existência e que dizia ser um recanto muito querido do seu velho espírito, desde os tempos do Padre Manoel da Nóbrega.



Maurão, Mia, eu e Bill, jovens músicos do Grupo Manvantara na travessia do Canal de Bertioga , 1981.

sábado, 3 de outubro de 2009

Ardi, a Eva sucessora de Lucy

Descoberta na Etiópia dá pistas sobre origens do homem

Agência Reuters - Washington

Um esqueleto humano de 4,4 milhões de anos mostra que os humanos não evoluíram de ancestrais semelhantes aos chimpanzés, relataram pesquisadores nesta quinta-feira (1º). Em vez disso, o elo perdido - o ancestral comum aos humanos e aos macacos de hoje - era diferente de ambos e os macacos evoluíram tanto quanto os humanos a partir desse ancestral comum, afirmaram eles.

Os pesquisadores salientaram que "Ardi" deve ser agora o hominídeo mais antigo que se conhece mas não é o elo perdido. "Em 4,4 milhões de anos, encontramos algo um tanto perto disso", disse Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que ajudou a coordenar a equipe de pesquisa. Eles descreveram o esqueleto parcial de uma fêmea do Ardipithecus ramidus. A espécie hominídea viveu há 4,4 milhões de anos no que agora é a Etiópia. A criatura de 1,2 metro é um milhão de anos mais velha que "Lucy" o esqueleto de uma outra espécie, chamada Australopithecus afarensis, um dos pré-humanos mais conhecidos.

O estudo genético sugere que os humanos e nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, diferenciaram-se há 6 milhões ou 7 milhões de anos, embora algumas pesquisas sugiram que isso pode ter ocorrido há 4 milhões de anos. "Ardi" é claramente um ancestral humano e seus descendentes não viraram chimpanzés ou macacos, relataram os pesquisadores na revista "Science". Ela tinha uma cabeça semelhante a de macaco e dedos dos pés oponíveis que permitiam que ela subisse em árvores com facilidade, mas suas mãos, pulsos e pélvis mostram que ela caminhava como um humano moderno e não como um chimpanzé ou um gorila.

"As pessoas meio que assumiram que os chimpanzés modernos não evoluíram muito, que o último ancestral comum era mais ou menos como um chimpanzé e de que a linhagem humana passou por toda a evolução", afirmou White. Mas "Ardi" é "ainda mais primitiva que um chimpanzé", disse White.

Folha de São Paulo - 01/10/2009 - 17h08


Adão não estava lá


“Adão ainda não tinha vindo. Porque eu via um homem, dois homens, muitos homens e no meio deles eu não via Adão e nenhum deles conhecia Adão. Eram homens primitivos, esses que meu espíritos absorto, contemplava. Era o primeiro dia da Humanidade; porém, que humanidade, meu Deus!... Era também o primeiro dia do sentimento, da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas se diferenciava da sensação, de uma vontade que apenas desvanecia as sombras do instinto.

Primeiro que tudo o Homem procurou o que comer; após, procurou uma companheira, juntou-se com ela e tiveram filhos. Meu espírito não via o Homem do Paraíso; via muito menos que o homem, coisa pouco mais que um animal superior. Seus olhos não refletiam a luz da inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero e rijo da cabeça; sua boca, desmesuradamente aberta, prolongava-se para adiante; suas mão pareciam com os pés e frequentemente tinham o emprego desses; uma pele pilosa rija cobria suas carnes duras e secas, que não dissimulavam a fealdade do esqueleto.
Oh! Se tivésseis visto, como eu vi, o Homem do primeiro dia, com seus braços magros e esquálidos caídos ao longo do corpo e com suas grandes mãos pendidas até os joelhos, vosso espírito teria fechado os olhos para não ver e procuraria o sono para esquecer.

Seu comer era como devorar; bebia abaixando a cabeça e submergindo os grossos lábios nas águas; seu andar era pesado e vacilante como se a vontade não interviesse; seus olhos vagavam sem expressão pelos, como se a visão não se refletisse em sua alma; e seu amor e seu ódio, que nasciam, de suas necessidades satisfeitas ou contrariadas eram passageiros como as impressões que se estampavam em seu espírito e grosseiros como as necessidades em que tinham sua origem.

O Homem primitivo falava, porém não como o Homem: alguns sons guturais, acompanhados de gestos, os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes. Fugia da sociedade e buscava a solidão; ocultava-se da luz e procurava indolentemente nas trevas a satisfação das suas exigências naturais. Era escravo do mais grosseiro egoísmo; não procurava alimento senão para si; chamava a companheira em épocas determinadas, quando eram mais imperiosos os desejos da carne e, satisfeito o apetite, retraía-se de novo à solidão sem mais cuidar da prole.
O Homem primitivo nunca ria; nunca seus olhos derramavam lágrimas; o seu prazer era um grito e sua dor era um gemido. O pensar fatigava-o; fugia do pensamento como da luz. E nesses homens brutos do primeiro dia o predomínio orgânico gerou a força muscular; e a vontade subjugada pela carne gerou o abuso da força; dos estímulos da carne nasceu o amor; abuso da força nasceu o ódio, e a luz, agindo sobre o amor e sobre o tempo, gerou as sociedades primitivas.

A família existe pela carne; a sociedade existe pela força. Moravam as famílias à vista de todos, protegiam-se, criavam rebanhos, levantavam tendas sobre troncos e depois caminhavam sobre a terra. O Homem mais forte é o senhor da tribo; a tribo mais poderosa é o lobo das outras. As tribos errantes, como o furacão, marcham para adiante e, como gafanhotos, assaltam a terra onde pousam seus enxames.”
João Evangelista – Espanha, 1882 – Roma e o Evangelho, José Amigó y Pellicer – FEB Editora



Cenas de A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annoud. França/Canadá, 1981