domingo, 28 de junho de 2009

O Rio continua lindo (crônica em três atos)



“O Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, há tempos, deu-me, com relação ao assunto, uma explicação importante e na qual devemos meditar profundamente. Espíritos cheios de dívidas que desestimaram e ainda desestimam a bênção do tempo e o benefício das provas correcionais da pobreza e da riqueza, por ato de Misericórdia Divina, encarnam por uns 40 anos, como filhos de famílias abastadas, nos bairros de Copacabana, Leblon, Botafogo e Ipanema... Depois voltam à Espiritualidade e são examinados. E, visto que continuam doentes, viciados, incorrigíveis, reencarnam então, por outros 40 anos, como filhos de famílias pobres e residentes nas favelas do Estado da Guanabara. Em plena infância, ficam sem os pais. Aprendem, sozinhos, a andar os caminhos rudes, espinhosos, da cidade da miséria e do desconforto... Sofrem moral e fisicamente. Apanham surras continuas de outros companheiros das mesmas lutas... E acabam entendendo as corrigendas amorosas de Deus. E chegam no além, depois disto, melhorados, com algum mérito para desempenharem, mais tarde, tarefas educacionais e exemplificadoras no discipulado Cristão”.

Chico Xavier, em depoimento para Ramiro Gama

Fernanda e Rafael

Mercado popular carioca no final do século XIX


Os personagens dessa história se enquadram perfeitamente nessas características das almas apontadas pelo Dr. Bezerra, espíritos que em sucessivas existências se atraíram pelas afinidades naturais das suas marcas íntimas e realizaram experiências de cumplicidade que os envolveram em curiosas tramas do destino. Acostumados ao conforto e às facilidades materiais, fracassam em seus programas encarnatórios, propostos por eles mesmos quando estão na erraticidade. Deixam a carne em situação de desequilíbrio, corroídos pela culpa, e quando retornam para as lutas físicas se vêem em situações contraditórias que exigem escolhas cada mais difíceis e complexas. Contrariados com as próprias situações que criaram, abandonam os compromissos e fogem sistematicamente de si mesmos em novas quedas e agravamento de débitos.

Mas a própria vida se encarrega de reconduzi-los ao caminho, tirando-os dos desvios de suas rotas evolutivas. Alguns deles já começam a dar sinais de cansaço e já acenam para a busca de responsabilidades que antes nem imaginavam assumir. Outros persistem na indiferença ou infantilidade. Caminham espiritualmente em ritmos diferentes, mas, por atração espontânea, continuam ligados por laços aparentemente inexplicáveis. Quando encarnados, mal saem da infância e já se aproximam pelas circunstâncias cotidianas, pois, cada qual com suas condições sociais, voltam ao mesmos cenários físicos. Desencarnados, permanecem inquietos nos núcleos que os acolhem e não cessam as perturbações enquanto não se juntam para buscar respostas e curas para os males que juntos produziram. Os que avançaram um pouco mais, conquistam crédito em forma de recursos reencarnatórios, incluindo conhecimentos, porém se comprometem a auxiliar os que retardaram no caminho.

O cenário principal onde vêm se realizando essas experiências ora é o Rio de Janeiro , ora são os núcleos do mundo etéreo que orientam as coletividades que ali reencarnam como a eterna missão de ressurgirem espiritualmente. Nas últimas décadas do século que passou eles viveram situações de prova bastante dolorosas, proporcionais aos desvios de sua ações anteriores. Do antigo contraste entre a senzala e a casa senhorial eles saltaram para os conflitos violentos entre os bairros ricos e os morros pobres da moderna e perigosa sociedade urbana carioca. As mansões e suas futilidades; as favelas e suas necessidades. Aliás, foi no Rio de Janeiro que o termo favela adquiriu conceito de lugar, significado social e posteriormente virou sinônimo de território. A palavra é nome de uma planta rasteira trazida do sertão nordestino pelos soldados que participaram do massacre de Canudos e foram morar nas encostas dos morros. Com ela também veio a cobrança e os sucessivos acertos de contas entre vítimas e assassinos. Certamente aquelas milhares de almas que foram massacradas no famoso genocídio registrado por Euclides da Cunha foram atraídas para o Rio para acertar as contas com os seus antigos perseguidores. O Rio e suas classes dirigentes também tem graves compromissos coletivos assumidos com a nefasta instituição da escravidão africana. Em tempos mais remotos ainda, quando viviam na condição de abastados comerciantes fenícios, essas elites se habituaram a enriquecer às custas do sofrimento alheio, comercializando a carne e os destinos humanos. Muitos deles mais tarde se reuniram na península ibérica, sobretudo no litoral lusitano, onde deram continuidade às antigas inclinações marítimas.

Fernanda é um dos espíritos desse grupo. Dentre os seus antigos companheiros já vem diferenciando-se na progressão espiritual e, como foi dito, trabalha intensamente para vencer suas inclinações íntimas na prova da riqueza. Ao lutar contra suas limitações remete-se diretamente aos espíritos afins que ainda estão perdidos nas teias da ilusão. Essa reminiscência lhe causa um terrível sentimento de culpa e tristeza pela ausência e sofrimento dos companheiros queridos. Tem preferência especial por um deles, a quem se afeiçoou profundamente em várias existências. Trata-se de Rafael, espírito inteligente, ainda espiritualmente imaturo e inconseqüente. Os dois estão encarnados , porém em situações totalmente opostas. Queriam encarnar como futuros cônjuges, para constituir família e negócios, mas não lhes foi permitido tal desejo alegando-se que nas duas últimas existências haviam passado sucessivamente por essas experiências, abandonando os filhos e abusando dos recursos materiais recebidos. Para tentar novos rumos, Fernanda veio primeiro, uma década antes, em condições materiais mais confortáveis. Rafael não foi contemplado pela mesma “sorte”. Sofreria a prova do abandono e da miséria. Certamente se reencontrariam no momento e nas circunstâncias que a Providência Divina melhor julgasse apropriado. Nesse período de distância e isolamento, cultivariam um sentimento de intensa saudade e vazio, como preparação para preciosas horas de regeneração. As coisas não seriam nada fáceis para ambos. Ela sujeita aos perigosos riscos do tédio, da depressão e do suicídio. Ele provaria o completo abandono, a fome, a incerteza e a violência. Com eles também estariam – envolvidos em tramas complicadas- muitos outros antigos companheiros, também em posições opostas: policiais e bandidos, médicos e pacientes, patrões e empregados.

Essa trama existencial está em plena ocorrência. Fernanda já está completamnete envolvida. Não se recorda objetivamente de nada daquilo falamos e do qual teve participação consciente na elaboração do seu programa encarnatório. À vezes tem sonhos que lhe trazem algumas lembranças dessas reuniões de compromissos, mas ao acordar pensa que tudo não passou de fantasia ou recalques psicológicos. Ela é agora uma jovem carioca nascida no seio de uma família abastada, proprietária de uma grande rede imobiliária e comercial. Estudou em boas escolas, viajou para o exterior, conheceu os lugares mais visitados pelos turistas que anseiam conhecer o mundo. Tem inclinação especial para a arte, atividade que aprecia e consome, mas não pratica, apesar de ter sido iniciada de forma brilhante em música e algumas modalidades plásticas. No seu mundo social e círculo de amizades tudo o que podia ser feito ou experimentado já está registrado no seu antigo diário de experiências de menina, nas lembranças de moça e na memória de mulher. Para ela o tempo parece ter passado tão rápido que nem percebeu que as amizades se afastaram, tomando seus rumos na vida. As amigas de outras épocas a encontravam em inúmeras ocasiões e não compreendem por que ela anda sumida, não telefona, não se interessa pelas novidades que tomam conta da cidade e do mundo. Esses momentos, sempre entusiasmados e festivos, quase sempre acontecem no aeroporto, em restaurantes conhecidos e bem freqüentados ou então nos shoppings. Da última vez, por incrível coincidência, reencontrou esses amigos durante a demolição histórica do Muro de Berlim. Comemoraram, dançaram, tiraram fotografias e fizeram questão de guardar pedaços de concreto dos últimos vestígios do conhecido símbolo da Guerra Fria. Mas as despedidas são decepcionantes, depois das trocas de números de telefones e promessas de reencontros que nunca acontecem.

Linda e um tanto estranha para a maioria dos conhecidos, Fernanda Vieira de Souto continua a mesma de sempre para os amigos mais íntimos. Rica e nem um pouco esnobe. Sorridente, mas sempre com um olhar vago de quem , de repente, pode desmanchar-se em pranto. Suas antigas colegas de faculdade perseguiam os colunistas sociais na tentativa desesperada de aparecer nas famosas colunas de jornal ou nos comentários da televisão , mas eles queriam mesmo era saber dela, quem ela estava namorando, o que estava fazendo. Isso irritava as mais invejosas. Fernanda fugia, fugia, sempre fugindo dessas situações que considerava inúteis e ilusórias. O Rio das décadas de 1990 e 2000 foi tão marcante como foi e vem sendo para todas as gerações que ali são desafiadas pela existência. Para Fernanda, a imagem da Cidade Maravilhosa da sua infância e juventude também foi se desvanecendo com o passar dos anos. Tinha ouvido falar muito das décadas anteriores, do glamour aristocrático e da internacionalização do Rio, mas tudo não passava de nostalgia dos mais antigos. É apaixonada pela cidade, mas não era esse Rio de que tanto falam. Era um outro Rio de Janeiro, perdido na retina espiritual e que só conseguia recordar durante os sonhos em que se via rodeada de muitos amigos em meios a festejos noturnos, aventuras em locais ainda selvagens, ruas e bairros que hoje não existem mais. Do terraço da sua casa, que fica no alto de uma encosta, ela pode ver todos os dias a imensa Baía da Guanabara. Isso lhe causa ao mesmo tempo prazer e ansiedade. Não consegue olhar mais para o mar com a mesma admiração poética, nem apreciar a beleza das praias, dos calçadões, dos lugares típicos da paisagem que encanta e fascina há séculos os moradores e viajantes. Quando olha o azul do mar, volta-se automaticamente para a direção oposta e busca algo perdido nas velhas florestas. Em sucessivas noites de solidão, quando da janela do seu quarto pode apreciar o céu limpo ao redor, em plena zona sul, mira o Corcovado, o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar, mas não resiste à tentação de perceber como os morros foram sendo tomados pelas favelas e como a zona norte, em sua extensa vastidão plana foi ocupada pelos casarios. As janelas e luzes acesas dos apartamentos despertam sua imaginação em tudo que poderia estar acontecendo naqueles lares. O mesmo acontece quando olha agora, na outra direção, as milhares de lâmpadas, cada vez mais fracas e a perder de vista, atestando que ali dormem milhares de famílias em busca de sonhos. Nesses instantes a solidão aumenta e ela então fica mais introspectiva. Procura ouvir chamamentos, gritos, alguém clamando pela sua presença, pedindo sua ajuda. Algumas vezes chega a pensar que está ficando louca, que não fez as coisas que deveria ter feito no tempo certo para as moças da sua idade e da sua classe social. Namorou mas não se apaixonou de forma significativa a ponto de se casar. Não se via como dona de casa, pois havia estudado para ser executiva de negócios, mas também não sentiu a necessidade de ser mãe, como já havia acontecido com algumas amigas. Rompeu relações amorosas consideradas imperdíveis e altamente cobiçadas no seu círculo social simplesmente porque não via nisso nenhum tipo de valor significativo como modo de vida e felicidade. Dentro de si existe um vácuo, algo profundo e não preenchido nesses anos todos de estudos e conforto material. Teve amor e carinho da família, e sabe corresponder tudo isso, mas parece deslocada no tempo e consequentemente na esfera de interesses dos parentes sanguíneos. Não os contraria, mas também não os surpreendem com alguma inovação e sucesso, como é comum na sua cultura. A Fernanda linda da infância, enigmática da adolescência e misteriosa da juventude adulta continuava a semear dúvidas e perturbar a imaginação de vizinhos, admiradores, amigos e familiares. O que pretende ela nessa altura da vida? Está solitária, mas ao mesmo tempo possui um carisma natural para atrair os outros para a sua esfera pessoal. Não busca ninguém deliberadamente, mas está sempre sendo solicitada por alguém que conhece suas qualidades para resolver situações difíceis e complicadas. Apesar de só, é uma pessoas agradável, sempre afetuosa, às vezes intolerante com os erros alheios, mas sempre de forma educada e aberta. Esse é o segredo de sentir-se só, mas nunca estar isolada. Sua inteligência é um ponto forte de magnetismo humano. Fernanda vive cada vez mais em si mesma, não para si, mas para os outros. É a solidão dos iniciados, que brigam com o mundo, choram pelos cantos e sorriem alegremente para todos.

Guanabara, o seio do mundo

Complexo do Alemão, por Roberto Guerra


Ultimamente Fernanda sente-se atormentada por um pavor que no início lhe pareceu a conhecida síndrome do pânico. Um medo inexplicável, uma sensação de expectativa angustiante, que faz com que não durma e fique olhando pela janela, pensando em todas essas coisas. Quando dorme, tem sono profundo e acorda satisfeita. Fica intrigada com essa insônia sadia, logo transformada em preocupação indefinida, em algo que precisa ser feito, mas que não sabe o que é. Está em crise. Sabe e aceita isso como algo normal. Mas não consegue encontrar a solução. Está ficando cada vez mais preocupada. As mulheres da sua família sempre sonham coisas diferentes e intrigantes quando pressentem que mudanças graves vão acontecer. Há muitas décadas que isso não ocorria e sempre ficou sabendo disso através das conversas entre a avó paterna e as tias-avós, geralmente em ocasiões especiais, como os aniversários, velórios e casamentos. Isso explica, em parte, seu jeito misterioso e o olhar enigmático. Ela pertence ao núcleo burguês dos Vieira de Souto, uma antiga família portuguesa radicada há quase dois séculos no Rio de Janeiro. Eram todos provenientes do Porto e pequenas localidades próximas ao litoral , onde viveram séculos dedicando-se ao comércio de gêneros alimentícios. Muito experientes no segmento atacadista, os membros desse antigo clã tornaram-se ricos e influentes. Sempre foram admirados por seus clientes por serem muito discretos, sobretudo aqueles que tinham negócios nas colônias e certamente ligados aos altos funcionários da monarquia. Em tempos mais remotos, muitos haviam sido perseguidos por sua origens israelitas mas, como a maioria dessas vítimas da intolerância religiosa da contra-Reforma, adaptaram-se dolorosamente na condição de cristão novos, adotando inclusive nomes que lhes foram recomendados pelos anciãos de suas respectivas fratrias. Os primeiros parentes desse ramo da família chegaram para residir no Rio no início do século XIX, quando Portugal sofreu traumática invasão das tropas do general Junot, por ordem militar punitiva de Napoleão Bonaparte. Ao contrário dos núcleos que fugiram do país sob proteção da marinha real britânica, os Vieira de Souto deixaram Europa utilizando-se do fretamento particular de embarcações que faziam rota entre Cádiz e os portos do roteiro mercantil hispânico, do México até a região platina. A princípio acharam que poderiam ter se dirigido o Chile ou Argentina, mas obtiveram informações que nesses países – apesar dos ventos das mudanças liberais - ainda havia risco de hostilidade racial, por conta da grande influência do clero católico nos hábitos coloniais. Conheciam as cidades do norte e nordeste do Brasil, as quais já haviam sondado alguns empreendimentos, como Olinda e São Luis. Viam o Rio de Janeiro e o Brasil com uma certa desconfiança, pois eram avessos idéia da escravidão africana ali praticada em larga escala. Sempre condenaram o assunto nas rodas familiares e se mostravam indignados quando ficavam sabendo que algum membro do clã havia se envolvido com algum tipo de atividade ligada ao tráfico de negros para a América.

Educados na cautela para lidar com os momentos difíceis e na paciência milenar para fazer as mais graves escolhas na trajetória da sua raça, os Viera de Souto souberam esperar o momento mais favorável para tomar a decisão da mudança. Pensaram e repensaram e, embora ainda insatisfeitos e assustados com a própria decisão, resolveram finalmente se fixar na Guanabara. Nesses momentos de angústia com as coisas do destino a intuição das mulheres parece tomar de assalto o poder de escolha dos homens. Elas fecham o semblante, passam a usar trajes de cores mais escuras, reduzem a quantidade da alimentação e mudam até a rotina no cardápio diário. Tudo para chamar a atenção para a gravidade dessas circunstâncias. Não raro conversam entre elas sobre os sonhos que lhe causam forte impressão, nos quais escutam longas dissertações morais dos antepassados mortos, revelando nas entrelinhas dessa narrativas cheia de metáforas os detalhes dos acontecimentos futuros. Os homens não entenderiam logo de cara os significados desses acontecimentos do mundo espiritual, daí todo esse ritual preparatório para que tais revelações lhe chegasse de forma convincente aos ouvidos. Naqueles dias cinzentos e de noites frias e escuras muitas delas sonharam com paisagens paradisíacas que lembravam o Edem, cuja claridade do sol e as cores da natureza jamais havia penetrado nos seus olhos ou na imaginação despertada pelos relatos literários. Era um mundo totalmente diferente, no qual transitavam com muita liberdade e alegria todos os antepassados perdidos na longa diáspora. Eles viviam uma harmonia entre si, entre outros povos, incluindo seres selvagens, em franca alegria e tranqüilidade. Todos falavam do Messias, que não era especificamente alguém, mas uma grande reunião de almas em busca de um mundo melhor. Quando falavam do Messias lhe vinham a mente a figura a de uma tribo perdida no deserto – Ismael e Hagar – e outras que foram banidas pelas guerras sanguinárias em diversas épocas da Antiguidade. Dos sonhos relatados pelas mulheres o que mais causou impressão e dúvida foi o de uma viúva que parecia ter perdido a sanidade mental, pois sempre falava de coisas confusas e sem sentido. Segundo ela, o Messias havia se manifestado numa reunião feita num grande palácio de vidro, onde todos estavam sendo observados pelas demais tribos e todos os povos, esperando que uma importante decisão fosse tomada sobre o destino de Canaã. Na memória de todos que lá estavam ou que acompanham de lugares distantes estavam gravadas cenas horríveis de cadáveres terrivelmente magros, maltrapilhos e amontoados, sendo enterrados aos montes em extensas valas. Algumas delas se recusaram falar com os maridos sobre esse sonho da viúva e outras ficaram tão traumatizadas que preferiram apagar essa experiência de suas lembranças. As mais atrevidas perguntavam-se intrigadas no silêncio das noites por que não tinha coragem de recordar, já que não era de bom costume fugir da verdade. Então o pavor ia aumentando, pois algumas também se viam entre aqueles montes de corpos esqueléticos e não se perdoavam por ter permanecido em suas casas seguras e confortáveis quando tinham sido alertadas para fugir na direção da bússola e de lá para o Novo Mundo. A Guanabara, que os tamoios chamavam "seio do mundo" , escolhida como refúgio, na verdade não era um lugar estranho para eles. Os gênios espirituais que os conduziram para cá sabiam que a paisagem carioca já havia sido registrada em suas mais antigas lembranças desde os tempos em que os maiores navegadores da Antiguidade faziam aqui suas incursões exploratórias.

Reencontro


Este é o mundo de Fernanda. Um mundo não muito distante do mundo em que agora vive Rafael, a sua alma gêmea, da qual não se lembra com a memória da existência atual, mas que permanece gravada na lembrança mais profunda do seu Espírito imortal.

Rafael tem a mesma sensação e, como ela, não sabe qual é o sentido verdadeiro de sua vida. Eles andam pelas ruas do Rio com a nítida impressão que vão encontrar alguém que conhecem e que ainda não voltaram de uma viagem ou coisa parecida. O mundo de Rafael, com vimos, é o lado obscuro da cidade. Para os olhos comuns ele nasceu em circunstâncias que só podem ser explicadas pelo determinismo biológico e social. É que se chama de má sorte. A mãe de Rafael cresceu nos morros e, como ele hoje, vivia nas ruas onde aprendeu tudo de ruim. Ela se separou do menino quando este tinha apenas três meses. Rafael foi levado por um traficante para quem ela devia dinheiro e , desde aquele dia, nunca mais viu a criança, sendo expulsa violentamente da favela controlada pelo marginal. Mais tarde soube que o traficante havia sido morto e voltou ao morro para tentar recuperar o filho. Rafael já estava com sete anos de idade e agora fazia parte de uma turma de crianças que vivem errantes pelas ruas do centro da cidade. Famintos do corpo e sedentos de amor, preenchem essas carências com pequenos roubos, cheirando cola de sapateiro, brincando até altas horas da madrugada até que o sono os abatem e o fazem esquecer por algumas horas aquela situação de dor e miséria. Estão adaptados, mas não satisfeitos. Rafael está entre eles, mas não se sente um deles. Está agora com 12 anos mais ainda não sabe exatamente o que aconteceu com ele nos últimos anos e como foi parar nas ruas. Não tem noção do que seja uma família, do que é afeto ou o que seja um lar. Ultimamente a turminha, que antes se escondia sob um viaduto e de lá foram expulsos por invasores, dorme sob uma parte coberta de um prédio comercial. Dormem tarde e tem que levantar logo que as portas das lojas começam a ser abertas. Os comerciantes não gostam de vê-los por ali, pois sabem que os fregueses serão certamente incomodados ou assaltados por eles. Rafael tem estado meio inquieto e apreensivo. É o mais velho da turma e atua como condutor dos menores, por quem demonstra afeto e proteção.

Nas madrugadas tem aparecido uma Combi com um motorista alto e forte e uma moça muito simpática. Eles trazem sopa num enorme caldeirão para alimentar as crianças. De vez em quando trazem roupas usadas e cobertores, que logo desaparecem, por não ter onde guardar durante o dia. Rafael é apaixonado pela estátua do Cristo Redentor e vive falando de uma luz diferente que aparece sobre a cabeça do Cristo e que acredita ser aviso de uma alguma coisa importante que vai acontecer. Os meninos riem quando ele conta essa história maluca e dizem que é efeito da cola de sapateiro. Ele também sempre fala disso para a moça da Combi e ela o escuta com atenção e diz acreditar nele. Já quase saindo, ela pede para ele ficar sempre de olho nos menores, principalmente num pequenino que é sonâmbulo e sempre vai em direção da avenida. Ele promete que vai ficar vigiando. A moça e o motorista vão embora e tudo recomeça no outro dia. O motorista se dirige para um bairro próximo a Botafogo. Vão conversando sobre os planos de levar as crianças para um lugar mais seguro, onde irão construir uma escola profissionalizante, alojamentos confortáveis, parques com brinquedos e muitas outras coisas. Conversam sempre sobre esses planos até que se lembram que as crianças se recusam a ficar em qualquer lugar que não se já rua. Gostariam de ir para uma casa, serem adotados para uma família. Mas já estão grandes demais. A rua tem mais liberdade. Ela já pensou em levar o Rafael para casa e adotá-lo, mas ele age com indiferença e desinteresse quando ela toca no assunto. Volta sempre a falar na luz do Cristo Redentor. Então ela desiste e recomenda que ele cuide dos menores.

A Combi para na frente de um enorme casa construída num condomínio fechado. As luzes ainda estão acesas. Ela se despede do motorista e o avisa que para não esquecer o recado para a Rita, a cozinheira, de comprar os legumes da sopa da próxima noite. Ela trabalha na casa e faz a sopa todas as tardes, depois que termina o serviço diário, antes de ir embora. A moça da Combi é da filha da sua patroa e sempre a convida para ajudar na distribuição da sopa. Rita sempre arruma uma desculpa para recusar o convite e diz que por enquanto só quer fazer a sopa. Rita é crente e mora na zona norte da cidade. Fala pouco de sua vida mas, quando fala, nunca deixa de falar que é uma nova pessoa, que encontrou Jesus e deixou muitas desgraças para trás. Vai aos cultos quase todas as noites e ora pedindo a Deus para reencontrar o filho que desapareceu quando ainda estava amamentando. Rita é uma mulher muito triste, sofrida, mas está confiante na nova fé. Já procurou o filho pelas ruas, mas nunca teve nenhum sinal confiável de que Rafael ainda estivesse vivo. Sua patroa é a mãe de Fernanda Vieira de Souto. Toda aquela angústia e vazio que Fernanda vinha sentindo está desaparecendo aos poucos. Ao passar pelas ruas do centro, a moça começou a prestar mais atenção em todas aquelas crianças famintas e maltrapilhas pedindo esmolas ou dormindo ao relento. Decidiu fazer alguma coisa e convidou um amigo para ajudá-la nessa aventura. Ele é Ricardo, um arquiteto bem conceituado, companheiro de Fernanda desde a infância. Compraram juntos a Combi, fizeram todos aqueles planos, mas continuam somente com a sopa. Ambos estão muito felizes, apesar do impasse na execução das outras idéias. Outros colegas também participam dessas e outras incursões de caridade, como anjos da noite, mas logo se cansam e afastam-se. Fernanda e Ricardo permanecem firmes. Quase desistiram da sopa quando tentaram levar as crianças para um lugar fixo, mas foram convencidos pela própria Rita a continuar já que ela estava bastante entusiasmada com aquele trabalho. Ela até prometeu que iria se esforçar para ir junto com eles, embora tivesse medo. Numa dessas tardes em que Rita preparava a sopa Fernanda percebeu algo diferente na cozinha. Sentiu um cheiro totalmente diferente e foi perguntar para Rita se ela havia acrescentado algum tempero diferente. Rita estava sorridente com o rosto iluminado, radiante. Fernanda ligou para Ricardo e contou-lhe o que estava acontecendo. Quando chegou, Ricardo percebeu que algo estranho estava para acontecer e quis somente acreditar que Rita somente havia colocado mais amor no tempero. Mas perdeu a chance de convencê-la a ir com eles. Hoje não tinha como se desculpar. A sopa estava deliciosa, especial. As crianças sempre perguntavam quem fazia aquela sopa e queriam conhecer essa cozinheira. Na verdade, quem sempre perguntava era o Rafael e o outros passaram a imitá-lo dizendo que queriam conhecer Rita. Os olhos dela brilharam quando finalmente aceitara o convite. Naquela noite nem voltaria para casa.

E foram os três, e com eles uma verdadeira legião de entidades luminosas, como numa caravana festiva. A medida que se aproximava do local o coração de Rita ficava cada vez mais apertado e apreensivo. A Combi estacionou em frente a uma calçada enorme. Eram 1:30 h. Ao perceber a movimentação, Rafael pôs-se em pé e foi logo acordando os menores que já dormiam há algumas horas. Rafael também estava apreensivo. Havia se deitado para acalmar os coleguinhas, mas não conseguia tirar os olhos do Corcovado. Sentia que naquela noite a luz azulada do Cristo voltaria a brilhar com muito mais força. Rafael viu a mesma luz envolvendo a Combi e, num rápido lance de olhar percebeu que havia muitas pessoas em torno do caldeirão de sopa. Elas estavam de mãos dadas e cantavam enquanto olhavam em direção ao Cristo. Rita estava em prantos e, tomada por um força estranha , desceu do veículo e foi na direção de Rafael que já a esperava de braços abertos. Nem tiveram tempo de se olharem para se envolver num forte abraço repleto de amor e saudades. Choraram em soluços até que perceberam que Fernanda e Ricardo também estavam abraçados com as crianças, todos chorando e muito emocionados com aquele reencontro. Ali não estavam somente os quatro, mas muitos dos antigos colegas de outros tempos passando pela mesma prova. As entidades eram também amigos de outras épocas, acompanhadas dos espíritos mentores das crianças. Eles também choravam de júbilo e oravam em agradecimento a Jesus por aquele momento tão significativo em suas vidas. Era um reencontro de resgate e também de ressurreição. Ao contrário de Rafael e Rita, para os demais as provas não acabaram naqueles instante. Teriam que trilhar ainda um caminho de dores mais profundas. Para alguns, ainda estava para vir a etapa mais sofrida resgate, no qual seriam eliminados num trágico acontecimento que ganharia notoriedade na imprensa mundial.

Mas o Cristo Redentor continua lá, atento a todos os acontecimentos. Para quem tem olhos de ver, sua luz estará sempre brilhante nas noites mais escuras e seu braços estarão sempre abertos nos momentos de aflição.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Tempos difíceis?

Die Moral, por Ludvik Glazer-Naude


Por mais que a racionalidade nos diga que as coisas sempre foram assim como são hoje, que o mundo sempre foi o mesmo, que as tendências humanas e os acontecimentos são imprevisíveis, não podemos crer facilmente que as coisas que estão acontecendo atualmente– em grande quantidade de casos - estejam dentro dos parâmetros de normalidade que conhecemos e nos quais fomos moral e socialmente educados para compreender e aceitar. Temos a impressão de que o mundo não é mais o mesmo.

Usando a ironia, ultimamente quando vamos falar de algo que está eticamente em cheque, iniciamos os nossos comentários com essa expressão “Antigamente, quando o mundo era normal...” Isso vem acontecendo com mais freqüência do que nas duas décadas passadas. Antes desse período, algumas mensagens mediúnicas nos alertavam (ou nos assustavam) de que iríamos ver coisas que os nossos avós jamais imaginaram que pudessem acontecer, não somente nos avanços , mas principalmente nos retrocessos morais.

Impressão nossa, simplesmente? Mudança de paradigmas? Decadência da civilização? Fim dos tempos?

Sempre que somos surpreendidos por uma notícia chocante normalmente recorremos aos nossos arquivos de valores para compreender o que está acontecendo. Geralmente são casos em que a natureza humana extrapola os limites conhecidos de comportamento. Chamam a nossa atenção especialmente os crimes hediondos, inimagináveis pelo senso comum. E logo perguntamos: Como é que pode? A que ponto chegou o ser humano?

Depois dessas primeiras dúvidas éticas, quase sempre, recorremos aos conceitos espíritas , para tentar ampliar a nossa capacidade de compreensão. Ouvimos e até entendemos as explicações , mas só nos contentamos quando conseguimos compreender de forma mais profunda e satisfatória as razões e não razões dos acontecimentos.

Na época do surgimento do Espiritismo, Kardec procurava dar conta de todas essas questões informando os leitores da Revista Espírita sobre esse olhar diferenciado que a doutrina oferece sobre os fatos. Além da sua argumentação doutrinária, sempre muito ponderada, recorria à opinião dos Espíritos Superiores sobre determinados acontecimentos. Hoje não temos essa facilidade – pelas próprias limitações sociais da mediunidade – e nos contentamos com o rico acervo de experiências deixado pelo Codificador, principalmente nas obras básicas da doutrina. Um deles que nos mais chamou a atenção – e já publicamos neste blog – foi o crime ocorrido em Bulkenhan, cometido por um adolescente de 12 anos ao sufocar perversamente cinco crianças num baú. Questionado sobre as razões, os Espíritos disseram que se tratava de alguém portador de uma sub-moral, que não tinha condições de viver em nossa sociedade e se “atreveu” a encarnar em mundo que estava fora dos seus padrões de moralidade. Sua atitude seria duplamente punida. (RE-outubro de 1858)

Mas os fatos continuam nos surpreendendo, cada vez mais chocantes e aparentemente inexplicáveis e incompreensíveis.

sábado, 13 de junho de 2009

A vinha e a essência

A Vinha Encarnada. Vicent Van Gogh, 1888

O movimento espírita começa exatamente quando as primeiras informações da Doutrina começam a ter repercussão moral no íntimo das pessoas. Quando isso acontece , somos naturalmente impelidos a fazer escolhas e tomar atitudes sobre os conceitos que de alguma forma extraímos da Codificação.

Portanto, o que caracteriza verdadeiramente um movimento social não é a sua organização, sua estrutura administrativa ou sua imagem institucional. Um movimento social é, acima de tudo, a expressão de uma vontade coletiva, dos sentimentos e anseios das pessoas e dos grupos que se reúnem por afinidade de aspirações.
Essa verdade cultural e sociológica se aplica perfeitamente ao Movimento Espírita, que é uma filosofia plural que se movimenta livremente através da consciência dos seus adeptos.

O Espiritismo não existe por causa das instituições espíritas, embora elas sejam importantes para zelar pela sua continuidade. São importantes, mas não são essenciais. A essência está naquilo que as pessoas pensam, sentem e fazem. E isso pode acontecer dentro ou fora das instituições. Elas são os meios e não a finalidade da Doutrina. Entre nós existem homens de ciência, de reflexão filosófica, de adoração religiosa, e principalmente de ação pragmática na promoção do espírito em evolução, na carne ou na erraticidade.

Assim, somos pesquisadores, educadores, artistas, ativistas sociais e políticos, vinculados ou não a instituições, sempre sonhando e trabalhando para que a ideologia que abraçamos como proposta de vida seja também útil aos nossos irmãos de Humanidade.

Queremos ser melhores e também melhorar o mundo. Queremos evoluir e transformar as coisas, sempre para melhor. Por isso toleramos até mesmo os intolerantes, porque acreditamos que um dia eles também vão mudar. Uns, não importa como, acreditam que isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde com a propaganda, outros com os estudos, outros ainda com a ação e o exemplo.

O importante é que somos espíritas, condição que carrega no seu significado toda a responsabilidade do conhecimento e do compromisso com a Verdade. Somos livres, somos a imagem e a semelhança de Deus. Somos Espíritos.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Por que ainda morremos?


Segundo Jesus , e também Sócrates – o primeiro com pleno conhecimento de causa; e o segundo plenamente consciente de suas limitações – é porque ainda não somos capazes de compreender e aceitar a Verdade. Esta é sempre dolorosa para as nossas mentes frágeis, que suportam apenas as verdades parciais, em pequenas doses do cotidiano. Por isso , ainda temos que viver em corpos e realidades limitadas pelo tempo biológico. Quando tivermos condições de conhecer as coisas na sua expressão integral deixaremos de morrer, porque não haverá mais necessidade de encarnar e sofrer as dores do corpo nem das circunstâncias pavorosas da carne. Isso é a ressurreição, o fim, a superação das encarnações, que é o meio.