domingo, 27 de abril de 2008

Atualizar o Espiritismo ou atualizar-se?


Toda doutrina profunda, voltada para a complexidade do Ser e do Universo, possui por si mesma as marcas da atemporalidade existencial e da duplicidade filosófica, de significados e significações. Tais marcas são reflexos da superioridade dos seus fundadores e da própria condição evolutiva do Espírito, que caminha entre a inexperiência e a maturidade, nos seus diferentes graus de percepção e compreensão das coisas que estão fora e dentro de si: o visível e o invisível; o explícito e o implícito; o exterior e o interior; o exotérico e o esotérico.

A Doutrina Espírita possui essas duas marcas: é simples e ao mesmo tempo complexa, dependendo da capacidade de percepção e compreensão de quem adota seus princípios e valores. Simplicidade e complexidade são intrínsecas entre si, o verso e o uno, o micro e o macro. Ambas são a riqueza e a diversidade das coisas, quando compreendidas em suas essências. No terreno da incompreensão, do preconceito, das limitações, o Espiritismo e os espíritas imaturos, sofrem com os efeitos da simplificação e também da complicação. Quando mais intelectualizados, complicados por natureza, nos enveredamos em dificuldades que nada têm a ver com a beleza e a pluralidade das verdades espirituais. Quando menos intelectualizados, na mesma rota de deslocamento, temendo a escuridão da caverna, fugimos da simplicidade e adotamos o outro extremo, que é a vulgarização. Cultivamos, ambos, um Espiritismo de aparência, superficial. E não poderia ser de outra forma, porque essa é uma limitação humana, agravada pelo obscurantismo das coisas e interesses materiais. A não ser que, por força do livre arbítrio e da boa vontade, resolvamos mudar e enfrentar as conseqüências dessa transformação. Mas essa é uma decisão intransitiva e faz parte da nossa auto-educação, terreno pessoal e inviolável, cuja essência, além de nós, somente Deus possui acesso.

Era Kardec um iniciado?

“O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: os das manifestações, o dos princípios de filosofia e moral que delas decorrem, e o da aplicação desses princípios. Daí as três classes, ou antes, os três graus dos seus adeptos: 1º) os que crêem nas manifestações e se limitam a constatá-las: para eles, é uma Ciência de experimentação; 2º) os que compreendem as suas conseqüências morais; 3º) os que praticam ou se esforçam por praticar essa Moral.” – O Livro dos Espíritos – Conclusão, VII.


Já ouvimos essa pergunta muitas vezes da boca de muitas pessoas, mas poucas foram as oportunidades de emitir a nossa opinião de forma reflexiva, para tentar responder essa dúvida. A pergunta mais adequada a ser feita é a seguinte: o Espírito que foi Kardec sofreu algum tipo de mutação que afetou sua evolução pessoal durante sua existência como Rivail? Certamente que sim. Mas que tipo de mutação foi essa? Que proveito moral ele tirou do espiritismo na esfera da sua experiência pessoal?

Como já expomos num texto sobre a construção de uma educação espírita, achamos que a figura positiva de Rivail realmente sofreu uma transformação substancial na personalidade no decorrer das suas experiências espíritas. Tal mudança obedecia ao princípio de uma lei que ele próprio percebeu nos primeiros contatos com os fenômenos: as repercussões morais dos fatos aparentemente sobrenaturais. Do homem de ciência nasceu o filósofo e deste brotou o homem novo, espiritual, maduro, realizado, seguro das suas convicções, das responsabilidades que havia contraído antes e durante essa encarnação. Desempenhou uma grande tarefa, auxiliou direta e indiretamente milhões de almas. Desencarnou tranqüilo e certo de que havia cumprido com êxito sua missão. Mas não podemos esquecer que Kardec possuía uma individualidade, portando, uma equação existencial que atinge a todos que se encarnam, mesmo que as vivências sejam orientadas para o interesse coletivo.

Allan Kardec foi o pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, não por coincidência nascido na cidade de Lyon, uma antiga colônia romana fundada em 43 a.C., anteriormente denominada Lugdunum. O penúltimo dos seus quatros nomes – Denizard[1]- refere-se a “Denis-Ard”, que identifica pela tradição mística uma entidade espiritual protetora da nação francesa, cujo nome veio sendo corrompido pelo uso popular: Dionysius-Dionys-Denis; e Ard, que é uma derivação latina de “Ardenae” e depois “ard-nae”, que significa floresta ou radicalmente “mata-grande”. Nas Ardenas estão localizados os bosques onde os druídas praticavam o culto dos carvalhos sagrados. Com o advento do Cristianismo na Gália, três santidades do catolicismo, cultuadas durante a Alta Idade Média, herdaram essa simbologia onomástica: Denis, Rústico e Eleutério.

O nascimento de Rivail na França, especificamente em Lyon, não foi então foi produto do acaso, como não seria casual mais nada na vida da Humanidade após a publicação das obras de Allan Kardec. A história da sociedade francesa foi sendo forjada com o desenvolvimento do espírito místico gaulês e libertário dos celtas e a construção do chamado “coração da latinidade” se confunde com o a propagação da Cristianismo nessa vasta região da Europa Ocidental. Durante séculos estabeleceu-se ali uma forte cultura de independência e contestações às forças políticas opressoras. Foi ali também que desabrochou a mais forte tradição espiritualista da Europa[2]:

“Acreditavam os gauleses em numerosos deuses, hoje muitos mortos para se incomodarem com o anonimato. A crença em uma agradável vida além-túmulo era tão forte que a isso atribuiu César muito da bravura gaulesa. Valério Máximo conta que faziam empréstimos uns aos outros para liquidação no céu; e Possidônio diz ter visto gauleses lançarem na pira crematória cartas destinadas aos amigos do além e que o ‘cremando’ entregaria.

(...) A maior das províncias gaulesas era a Gália Lugdunense, de Lugdunum (Lyon), a capital; esta cidade, que ficava na confluência do Ródano com o Saône e no cruzamento da grande estrada real construída por Agripa, tornou-se o centro de uma rica região e a capital de toda a Gália. O ferro, o vidro, e as indústrias cerâmicas ajudavam a manter uma população de 200.000 almas, no século I da nossa Era. Ao norte ficava Cabillonum (Chalon-sur-Saône), Caesarodunum (Tours), Augustodunum (Autun), Cenabum (Orléans) e Lutetia (Páris). ‘Passei o inverno em nossa amada Lutetia’, escreve o Imperador Juliano, ‘que é como os gauleses chamam a cidadezinha dos parisis, uma ilha no rio... Bons vinhos se fazem por lá’. ”

Certa ocasião Allan Kardec se mostrou bastante surpreso com a popularidade e aceitação do Espiritismo na sua cidade natal. Ali se encontrava, segundo ele, “os verdadeiros Espíritas, ou melhor, os Espíritas cristãos”, os que “enfim, não se contentam em admirar a moral: praticam-na e aceitam todas as suas conseqüências”[3]. Nada impressionados com o fato, os Espíritos lhe disseram: “Porque admirar-te? Lyon foi a cidade dos mártires. A fé aqui é viva. Ela fornecerá os apóstolos do Espiritismo. Se Paris é o cérebro, Lyon será o coração”.

Realmente Lyon possui nessa longa trajetória histórica uma grande parte do espírito libertário francês: foi palco de uma das mais importantes heresias medievais e berço de inúmeras personalidades que honraram, muitas vezes com a própria vida, os valores autênticos do Cristianismo. A antiga vila latina foi o cenário de alguns dos mais terríveis martírios de cristãos primitivos. O bispo Potino, de 90 anos, e o menino Pôntico, de apenas, 15 anos foram torturados até a morte por ordem do imperador Marco Aurélio e foi também para punir os seus seguidores que aconteceu no ano 177 a célebre “Augustália”, festa que reuniu todos os delegados romanos da Gália, na qual, como sinistra atração, foi interrogado um grupo de prisioneiros que deveriam negar a fé cristã ou morrer sob tortura na presença dos ilustres convidados. Desses, apenas 48 mantiveram a convicção e foram mortos com apavorantes requintes de crueldade: Átalo foi posto numa cadeira de ferro incandescente para ser assado vagarosamente. A jovem escrava Blandine foi torturada durante todo o dia e depois colocada dentro de um saco para ser estraçalhada na arena por um touro. Em 178, o sucessor de Potino, o erudito bispo Irineu também foi martirizado.

Acontecimentos como este deram ao Cristianismo da Gália e posteriormente ao clero a fama de ser o menos imoral, o mais educado e competente entre ações missionárias católicas. Foi ali que surgiram os primeiros hospitais, os Hôtel-Dieu, para acolher órfãos, viúvas, pobres e escravos. Um clérigo de Lyon, o arcebispo Agobardo (779-840), tornou-se um modelo de fé e coerência e um grande inimigo da superstição: “condenava o julgamento pelo duelo ou ordálio, a adoração de imagens, a explicação mágica das tempestades e os sofismas empregados na perseguição de feitiçaria; era a cabeça mais esclarecida do seu tempo”[4]. Foi também neste mesmo ambiente histórico que, em 1170, vivera o líder de um grupo de hereges e dissidentes do catolicismo medieval, reforçando a imagem da cidade como símbolo secular de contestação e desafio aos ditames do poder religioso dominante. Sobre ele e o seu grupo, que eram precursores do lema “Fora da caridade não há salvação”, o Espírito Emmanuel[5] escreveu o seguinte, referindo-se aos raros casos de piedade cristã na sociedade civil daqueles tempos obscuros:

“Neste caso está Pedro Valdo (Pierre de Vaux), que, embora fosse um homem de negócios, em Lyon, desligou-se de todos os laços que o prendiam às riquezas humanas, despojando-se de todos os bens em favor dos pobres e necessitados, comovido com a leitura da exemplificação de Jesus no seu Evangelho de amor e redenção. Esse homem extraordinário, a quem fora cometida a missão de instrumento da vontade do Senhor, mandou traduzir os livros sagrados para leitura pública e, junto de outros companheiros que passaram à História com o nome de valdenses, iniciou amplo movimento de pregações evangélicas, à maneira dos tempos apostólicos. Os pobres de Lyon foram excomungados, primeiramente pelo arcebispo da cidade e mais tarde, em 1185, pelo pontífice do Vaticano. A Igreja não poderia tolerar outra Doutrina que não a sua, feita de orgulho e mal disfarçada ambição. Qualquer lembrança verdadeira e sincera, de seu Divino Fundador, era tomada como heresia abominável e suscetível das mais severas punições. A verdade, porém, é que, se os valdenses foram caluniados pelas forças católicas, suas pregações e seus apelos nunca mais desapareceram do mundo, desde o século XI, porque, com vários nomes, as suas organizações subsistiram na Europa até à Reforma, não obstante os guantes de ferro da Inquisição.”

Mas a França do início do século XIX estava sob a tutela política de Napoleão e este, em pleno conluio com a Igreja, restaurou-lhe amplo poder de ação e domínio no conhecido período revolucionário da reação burguesa. Segundo Canuto Abreu[6], o clero apropriou-se das instituições educacionais da França, não deixando outra alternativa para as famílias de espírito libertário senão a busca de ensino e boa educação protestante no país vizinho. Filho de uma tradicional família de magistrados e educadores, Hippolyte Rivail realizou os primeiros estudos na cidade natal e, mais tarde, ingressou no Instituto de Yverdon, na Suíça, sob a direção de J.H. Pestalozzi. O famoso Instituto, estruturado nas idéias do seu famoso diretor, teve influência marcante na formação intelectual e moral do jovem estudante. Trabalho, solidariedade e tolerância não eram somente conceitos filosóficos de uso intelectual, mas princípios da prática educativa cotidiana em Yverdon. A transferência do menino Rivail para Yverdon não era um simples capricho de uma família burguesa e sim uma necessidade ideológica. O pai de Rivail era maçom e a França estava agora sob o regime da intolerância da Concordata entre Bonaparte e Pio VII. Após a revolução o clero se reerguera com todo o fanatismo e sede de vingança contra o liberalismo. Todo o sistema educacional caíra nas mãos dos jesuítas. O ensino foi totalmente modificado, banindo-se do currículo disciplinas essenciais para a boa formação humanista como o grego, história, ciências morais e políticas. A própria Escola Politécnica teve suas atividades encerradas. A solução era buscar uma ilha de liberdade, que estava ali bem próxima da França alpina, a Suíça. Nessa terra de refugiados e de livre pensadores Rivail concluiu sua formação em 1818, acumulando uma ampla formação cultural e intelectual. O contexto histórico das primeiras décadas do século XIX se encarregaria de dar um acabamento a essa formação. Voltaire ainda reinava nas mentes rebeldes, mas o método comteano falava mais alto nos espíritos mais moderados. Rivail manteve não somente a boa formação moral de Yverdon, mas também, ao que tudo indica, as mais antigas raízes da infância e da família cristã lyonesa. Sua interpretação do trecho do Evangelho de João, no qual identifica no Espiritismo o Consolador e o Espírito Verdade, certamente não foi produto das idéias de Rousseau ou Pestalozzi, nem da sua formação científica positiva. Tal interpretação ainda causa estranheza em muitos espíritas avessos à religiosidade e ao misticismo, mas ainda está lá, historicamente surpreendente e intacta.


A lama , a água e a luz


Mas a antiga tradição cristã lyonesa, além do caráter herético, cujos conflitos com o clero secular foram se aprofundando no decorrer dos séculos, por isso mesmo adquiriu, como sistema defensivo, o perfil esotérico, destinado não às massas, mas para uma elite que não aceitava as limitações políticas do clero romano à livre interpretação das idéias do Cristo. Aliás, essa sempre foi a função histórica do esoterismo ao criar seus círculos protetores através da restrição de acesso e de técnicas educativas de transmissão de conhecimentos: metáforas, parábolas, símbolos e enigmas. Dentre essas técnicas, fartamente utilizadas pela andragogia iniciática, lembramos a do mistério ou sagrado (do grego mysté e do latim sacrum), restrito aos iniciados, ou seja, pessoas especialmente preparadas para ter acesso às informações especiais, revelações de forte repercussão mental e espiritual, ainda distante da compreensão de espíritos imaturos e ingênuos. Ao contrário da informação exteriorizada e concreta, o mistério é mistério somente para aqueles que não foram iniciados. São pérolas abstratas que não podem ser jogadas aos porcos, ainda em contato com a impureza da lama, escravos da postura horizontal e mentalmente ainda sujeitos ao imperativo do instinto e da lei de gravidade. O conhecimento da reencarnação, por exemplo, fora os círculos esotéricos era divulgada como crença e dogma, na linguagem do mistério da ressurreição ou do mito da metempsicose. Uma parte significativa do clero lyonês, herdeiro da remota tradição celta, era provável e culturalmente iniciado, ou seja, conhecia aspectos até então ocultos, místicos e sagrados das verdades espirituais, naquela época em posse do cristianismo católico. O grau de pureza ou maturidade dos iniciados não era medido somente pelo entendimento intelectual , muito menos pelo julgamento comportamental, mas pela capacidade de compreensão, ou seja, de flexionar emocionalmente tal conhecimento no terreno prático e vivencial. O processo iniciático não ocorre necessariamente por força do ambiente externo dos núcleos e templos e das técnicas educativas: ocorre certamente no ambiente interno, independente dos meios empregados. É um processo muito semelhante à alfabetização da criança: existem meios facilitadores comuns a todos, porém o despertar é uma experiência individual. Vivência é exatamente isso, o domínio racional das emoções pelo controle dos sentimentos, a clássica diferença entre o instinto (Ego) e personalidade (Eu) que se depura e define nas sucessivas existências carnais. Na evolução anímica, segundo as antigas tradições orientais, também ocorre a mesma seqüência trifásica da transformação mental: dormimos no vegetal, sonhamos no animal e acordamos no animal. No plano hominal tal seqüência iniciática se processa em graus de maturação da consciência ou auto-percepção: no primeiro grau de uma escala auto-educativa , porém transpessoal e interativa, está o profano (a lama), o aprendiz ainda impuro que não saber viver entre os impuros sem se sujar; no segundo grau está o semi-iniciado (a água), o servidor que só se mantém puro longe ou isolado dos impuros; e no terceiro grau está o pleni-iniciado (a luz), o discípulo, o servo de alta fidelidade, que não precisa abandonar o mundo, pelo contrário, ilumina o mundo vivendo puro entre os impuros. Quando Alan Kardec se referiu aos espíritas lyoneses como espíritas cristãos, religiosos, estava se referindo aos iniciados. Na conclusão de O Livro dos Espíritos acima citada esse conceito é fato explícto. Tal iniciação não se deu pelas aparências cerimoniais ritualísticas exteriores, superficiais, mas pela maturação consciencial, adquiridas nas provas morais da família e da sociedade. O próprio Kardec na sua trajetória de quase duas décadas de estudos e vivências doutrinárias alcançou, juntamente com muitos companheiros da Sociedade Espírita de Paris, essa condição espiritual, muito além da experiência intelecto-filosófica. Tal experiência de maturação , independente da escola educativa ou da personalidade do educando, se realiza também em três fases: a Adoração, a curiosidade e a impressionabilidade, que é a fase de descoberta científica e deslumbramento filosófico; o Serviço, a caridade, que é o impulso compensatório de salvação, de preencher o vazio deixado pela descoberta e admissão das imperfeições; e o Sofrimento, o testemunho, que é o efeito do impacto causado pelas transformações morais nos semelhantes e no ambiente, resultando em reações violentas contra a exemplificação do educando. Como todo educador que se auto-educou antes de educar os outros, Allan Kardec passou por essas três fases e não ficou impune, aos olhos humanos, do seu atrevimento espiritual: foi sendo severamente punido pelos que iam sendo atingidos pelas suas transgressões aos interesses materiais: os cientistas e os filósofos, com a sua auto-suficiência intelectual; o clero, com a sua arrogância dogmática; e finalmente os próprios espíritas, companheiros de ideal, com a sua vaidade e prepotência de novos donos da verdade. Todos agrediam e ainda agridem Kardec e todos os que se iniciam verdadeiramente no Espiritismo na medida que suas descobertas exemplificações vivenciais repercutem como chicotadas no orgulho e na vaidade dos expectadores. É a conhecida revolta dos aprendizes contra os mestres, experiência também conhecida com amargor pelos pais na educação dos filhos.

Esse tem sido o sentido religioso, místico e educativo do Espiritismo. Um Espiritismo de profundidade filosófica (o Ser e não o mundo como objeto) , de significados e significações espirituais clarificadoras ( a mística interior de adoração natural), cada vez mais distante do obscurantismo dogmático dos ritos e cerimônias exteriores e também da frieza cerebral do ceticismo positivo. Este é o Espiritismo iniciático, o que mais se aproxima da mensagem do Cristo e que gera nas pessoas, encarnadas ou desencarnadas, o interesse pela transformação moral. Esta não acontece somente porque tomamos ciência dos Espíritos e da sobrevivência após a morte. O mesmo acontece com as pessoas desencarnadas que são afetadas pelo Espiritismo. Elas não mudam porque ficam sabendo que desencanaram e que existem seres inteligentes vivendo e aprendendo na carne. Essa mudança de rota geralmente acontece pelo estímulo das provas e conflitos existenciais , lá e cá. Quando acontece aqui, sentimos primeiro a necessidade de fuga, de mudar de ambiente, vontade de morrer. Quando acontece lá, sentimos a vontade de viver, de recuperar o tempo perdido, daí a necessidade de reencarnar. Essa é a iniciação que todos temos fazer e que têm os seus altos e baixos, equívocos , decepções e que, com o passar do tempo, atinge o fim destinado, que é a compreensão gradual e evolutiva da Verdade.

[1] Em A Missão de Allan Kardec, Carlos Imbassahy cita esta livre interpretação feita por Canuto Abreu em artigo de 1956, publicado na revista Santa Aliança: “Segundo creio, o nome Denizard deriva da velha expressão latina Dionysos Ardenae, designativa de Deus Dyonísio, da Floresta de Ardenas. Dentro dessa imensa mata gaulesa que Júlio César calculava em mais de 500 milhas, os Druídas celebravam as evocações festivas do Deus Nacional da Gália, denominado Te-Te-Te, Altíssimo, representado por um carvalho secular. À sombra do carvalho divino os legionários romanos, após a derrota de Vercingetorix, ergueram a estátua do Deus Dyonisius, também conhecido pelo nome de Bachus, deus das selvas, das Campinas, das uvas, dos trigais, amante da rusticidade e da liberdade. E, de conformidade com o costume dos conquistadores, inscreveram uma legenda latina ao pé do monumento. Supõe-se que rezava assim: Dionysio Rústico Eleuthero, com a significação de Dionysio campestre em liberdade.”

[2] Will Durant, César e Cristo, Capítulo XXII. Record.

[3] Revista Espírita. Outubro de 1860.

[4] História da Civilização - A Idade da Fé, Will Durant. Record

[5] À Caminho da Luz, P. 158. 21ª ed. FEB. R.J.

[6] Citado por Carlos Imbassahy, A Missão de Allan Kardec. Federação Espírita do Paraná. Curitiba, 1988.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Mediunidade de Prova

Chico Xavier, exemplo de mediunidade e responsabilidade social.



"Os médiuns, na sua generalidade, não são missionários, na acepção comum do termo: são almas que fracassaram desastradamente, que contrariaram sobremaneira o curso das leis divinas e que resgatam, sob o peso de severos compromissos e ilimitadas responsabilidades, o passado obscuro e delituoso. O seu pretérito, muitas vezes, se encontra enodoado de graves deslizes e de erros clamorosos. Quase sempre são Espíritos que tombaram dos cumes sociais pelo abuso do poder, da autoridade, da fortuna e da inteligência, e que regressam ao orbe terráqueo para se sacrificarem em favor do grande número de almas que se desviaram das sendas luminosas da fé, da caridade e da virtude". – Emmanuel


O conceito de mediunidade prova, tal qual conhecemos e usamos atualmente, não aparece nas obras e dissertações de Allan Kardec senão nos exemplos em que os médiuns são por ele defendidos contra as calúnias e perseguições. Para Kardec, o médium é uma figura pública que se expõe aos mais terríveis escolhos e julgamentos humanos, na maioria das vezes carregados de ironias e injustiças, como sempre aconteceu em todas as épocas e circunstâncias em que as faculdades psíquicas se manifestam em sociedades supersticiosas, conservadoras e dogmáticas. Foi dessa forma que o Codificador falou dos médiuns dos tempos antigos e dos seus contemporâneos, em especial as irmãs Fox e Daniel Dunglass Home. Mostrou a importância social desses operários da Verdade, mesmo que tais experiências muitas vezes fossem incompatíves e contraditórias em relação à moral doutrinária. Registrou a conduta discreta e moderada dos médiuns educados nas sociedades espíritas, mesmo porque estes também não estavam isentos dos seus compromissos e débitos pessoais. Ele mesmo e Amélie não passaram por momentos tormentosos de preparação e exercício de suas faculdades e tarefas?


Na literatura espírita a expressão “mediunidade de prova” foi utilizada pela primeira vez em 1940 no clássico “Mediunidade”, de Edgard Armond, o célebre instrutor e pioneiro de cursos para médiuns da Federação Espírita do Estado de São Paulo. Armond se antecipou até mesmo a André Luiz, que só foi utilizar o termo alguns anos após em uns dos livros da famosa série psicografada por Chico Xavier. O antigo projeto de Allan Kardec e de Bezerra de Menezes em criar escolas de espiritismo e treinamento psíquico tinha como meta curricular esclarecer e preparar os médiuns para realizar suas tarefas e missões. Armond e sua equipe transpuseram essas escolas, que são muitos comuns no mundo espiritual, para as instituições espíritas, tal qual planejaram os pioneiros.



Mas a deserção sempre ronda e assedia o trabalho mediúnico. Os Espíritos inimigos estão sempre atentos e muitos encarnados, incluindo alguns espíritas, contribuem para difundir os precedentes dessa triste fuga dos quadros colaborativos. Alguns confrades realmente não aceitam essa categoria mediúnica, mais por questão de limitação pessoal, do que propriamente por convição intelectual e científica. Como dizia J. Herculano Pires, estes têm dificuldades em aceitar a filosofia espírita como elemento de transformação moral e passam a acreditar que é mais fácil mudar a doutrina e a realidade natural do que a si mesmos.


Quando Emmanuel publicou a sua opinião acerca do tema, sintetizada na epígrafe acima, tornou-se mais clara a idéia da diferença entre mediunidade natural e de prova, bem como a inevitável comparação entre mediunidade-missão e mediunidade-tarefa, experiências diversas que marcam as especificidades e características dos portadores das faculdades psíquicas. Essa definição do principal mentor de Chico Xavier nos fez entender e lembrar de inúmeras personalidades no exercício mediúnico e posteriormente compreender a difícil experiência de cada um deles na condição do médium. A trajetória dolorosa entre as lágrimas e a resignação não poderia ser de outra forma, não num planeta em que a mediunidade é fator da natureza, mas também é tencologia psíquica e ferramenta evolutiva do Espírito. Compreendemos não só o fenômeno em si, mas também as causas do martírio de pessoas que dedicaram suas existências para difundir a realidade espiritual e também minorar o sofrimento alheio.


Lembrando Marshal MacLuhan, assim como todos os intrumentos criados pelo Homem são extensões dos limites do corpo, com o Espiritismo aprendemos que a mediunidade é a própria tecnologia psíquica, a extensão revolucionária dos limites da mente.



No entanto, a mediunidade não precisa ser somente escolhos e lágrimas. Ela poder ser exercida com equilíbrio e alegria, desde que o médium não se rebele contra a natureza e as suas próprias características psíquicas, marcas das suas possibilidades de ação, mas também reflexos dos seus limites pessoais. Diferente dos tempos antigos em que o médium era visto como aberração do sobrenatural, hoje a mediunidade adquiriu liberdade e responsabilidade social. É sacerdócio reconhecido em todas as religiões e filosofias humanistas, em diferentes manifestações culturais, inclusive no campo científico, mas continua sendo fator de risco em caso de abusos humanos. Na escola da Vida Planetária continua sendo o trajeto entre a perturbação e o equilíbrio, o sofrimento e a resignação, o fracasso e a vitória, o débito e o resgate, a estagnação e a evolução, o conhecimento e o auto-conhecimento, a dor e o amor, enfim, o dever e o prazer de ajudar o próximo.


A habilidade e a competência mediúnica, segundo Jesus


“A doutrina de Jesus ensina sempre a obediência e a resignação, duas virtudes companheiras muito ativas da doçura, embora os homens erroneamente as confundam com a negação do sentimento e da vontade. A obediência é o consentimento da razão; a resignação é o consentimento do coração. Ambas são forças ativas, pois carregam o fardo das provas que a revolta insensata não suporta. O covarde não é uma criatura resignada, assim como o orgulhoso e o egoísta não são obedientes. Jesus foi a encarnação dessas virtudes desprezadas pela antigüidade materialista. Veio no momento em que a sociedade romana agonizava, destruída pela corrupção. Veio fazer resplandecer, no seio da Humanidade moralmente enfraquecida, os triunfos do sacrifício e da renúncia carnal. Cada época é assim marcada com a característica da virtude ou do vício que a devem salvar ou perder. A virtude da vossa geração é a atividade intelectual; seu vício é a indiferença moral. Digo que é apenas atividade, pois o homem de gênio* se eleva de repente e descobre sozinho os horizontes que a multidão só verá muito depois dele, enquanto a atividade é a reunião dos esforços de todos para atingir um objetivo menos brilhante, mas que comprova a elevação intelectual de uma época. Submetei-vos ao impulso que viemos dar aos vossos Espíritos. Obedecei à grande lei do progresso, que é a palavra da vossa geração. Infeliz do Espírito preguiçoso, daquele que fecha seu entendimento! Infeliz! Pois nós, que somos os guias da Humanidade em marcha, o atingiremos com o chicote e forçaremos sua vontade rebelde com a dupla ação do freio e da espora. Toda resistência orgulhosa deverá ceder, cedo ou tarde. Mas, bem-aventurados aqueles que são mansos, pois receberão com doçura os ensinamentos’.


Lázaro - Paris, 1863 - Obediência e Resignação - O Evangelho Segundo O Espiritismo

sábado, 5 de abril de 2008

Mortes trágicas

Crianças, por Alfred Harry Pask

199- Por que a vida, frequentemente, é interrompida na infância?
- A duração da vida de uma criança pode ser, para o Espírito que está encarnado, o complemento de uma existência interrompida antes do seu termo marcado, e sua morte, no mais das vezes, é uma prova para os pais.
- Que sucede ao Espírito de uma criança que morreu em tenra idade?
- Recomeça uma nova existência.
Allan Kardec - O Livro dos Espíritos



As mortes trágicas são sempre motivo de profundas dúvidas e reflexões para os seres humanos. Não aceitamos essa fatalidade da vida e, depois de tantos milênios, não aprendemos a lidar com o assunto. As narrativas religiosas e filosóficas enchem nossos olhos e nossas mentes sobre os "porquês" das coisas, mas continuamos a rejeitar, pelo medo e pela fuga, o fato de que, a qualquer momento, a nossa frágil experiência biológica pode cessar. A idéia e todas as impressões negativas de uma tragédia está examente na constatação de que temos limites e que a imperfeição é uma determinação das leis da matéria. Na trajetória efêmera do relógio existencial, o nascimento e a morte estão bem próximos, seja para crianças, adultos ou idosos. O que importa, durante e depois de tudo o que acontece, é a indicação dos rumos seguros pela bússula eterna da consciência.


Morte de cinco crianças por um menino de 12 anos

Revista Espírita, outubro de 1858 - PROBLEMA MORAL

Leu-se na Gazette de Silése:

"Escreveu-nos de Bolkenham, em outubro de 1857, que um crime apavorante foi cometido por jovem menino de doze anos. Domingo último, 25 do mês, três filhos do senhor Hubner, fabricante de pregos, e dois filhos do senhor Fritche, sapateiro, jogavam juntos no jardim do senhor Fritche. O jovem H..., conhecido por seu mau caráter, se associou aos seus jogos e convenceu-os a entrarem em um baú depositado em uma casinha do jardim e que servia ao sapateiro para transportar suas mercadorias para a feira. As cinco crianças puderam nele entrar com dificuldade, mas se comprimiram e se colocaram umas sobre as outras, rindo. Logo que nele entraram, o monstro fechou o baú, sentou-se em cima, e ficou três quartos de hora escutando primeiro seus gritos, depois seus gemidos. "Quando, enfim, seus estertores cessaram, que os acreditou mortos, abriu o baú; as crianças ainda respiravam. Ele fechou o baú, aferrolhou-o e se foi brincar com papagaio de papel. Mas foi visto, saindo do jardim, por uma jovem. Concebe-se a ansiedade dos pais, quando perceberam o desaparecimento de seus filhos, e seu desespero quando, depois de longa procura, encontram-nos no baú. Uma das crianças vivia ainda, mas não tardou em entregar sua alma. Denunciado pela jovem que o havia visto sair do jardim, o jovem H... confessou seu crime com o maior sangue-frio e sem manifestar nenhum arrependimento. As cinco vítimas, um menino e quatro meninas de quatro a nove anos, foram enterrados juntos, hoje.

Nota. - O Espírito interrogado foi o da irmã do médium, morto há doze anos; mas que sempre mostrou superioridade como Espírito.

1. Ouvistes o relato que acabamos de ler da morte cometida na Silésia, por um menino de doze anos sobre cinco outras crianças? - R. Sim; minha pena exige que eu escute ainda as abominações da Terra.

2. Qual motivo pôde levar uma criança dessa idade a cometer uma ação tão atroz e com tanto sangue-frio? - R. A maldade não tem idade; ela é ingênua numa criança; é raciocinada no homem feito.

3. Quando ela existe numa criança, sem raciocínio, isso não denota a encarnação de um Espírito muito inferior? - R. Ela vem, então, diretamente da perversidade do coração; é o seu Espírito que o domina e o leva à perversidade.

4. Qual poderia ter sido a existência anterior de um Espírito semelhante? - R. Horrível.

5. Em sua existência anterior, ele pertencia à Terra ou a um mundo ainda mais inferior? - R. Não o vejo bem; mas devia pertencer a um mundo bem mais inferior que a Terra: ele ousou vir à Terra; por isso será duplamente punido.

6. Nessa idade a criança tinha bem consciência do crime que cometia, e dele tem a responsabilidade como Espírito? - R. Ele tinha a idade da consciência, é bastante.

7. Uma vez que esse Espírito havia ousado vir à Terra, que é muito elevada para ele, pode ser constrangido a retornar para o mundo em relação com a sua natureza? - R. A punição é justamente de retroceder; ele mesmo é o inferno. É a punição de Lúcifer, do homem espiritual rebaixado até a matéria; quer dizer, o véu que lhe esconde, de hoje em diante, os dons de Deus e sua divina proteção. Esforçai-vos, pois, para reconquistar esses bens perdidos; tereis ganho o paraíso que o Cristo veio vos abrir. É a presunção, o orgulho do homem que gostaria de conquistar o que só Deus pode ter.

Nota. - Uma observação é feita a propósito da palavra ousou, da qual se serviu o Espírito, e dos exemplos que foram citados concernentes à situação de Espíritos que se encontraram em mundos muito elevados para eles, e que foram obrigados a retornar para um mundo mais em harmonia com a sua natureza. Uma pessoa fez notar, a esse respeito, que foi dito que os Espíritos não podem retrogradar. A isso respondeu que, com efeito, foi dito que os Espíritos não podem retrogradar no sentido de que não podem perder o que adquiriram em ciência e em moralidade; mas eles podem decair como posição. Um homem que usurpe uma posição superior àquela que lhe conferem suas capacidades ou sua fortuna pode ser constrangido a abandoná-la e retornar ao seu lugar natural; ora, não está aí o que se pode chamar decair, uma vez que não fez senão reentrar em sua esfera, de onde saiu por ambição ou por orgulho. Ocorre o mesmo com respeito aos Espíritos que querem se elevar muito depressa nos mundos onde se encontram deslocados. Espíritos superiores podem igualmente se encarnar em mundos inferiores, para irem cumprir uma missão de progresso; isso não pode chamar-se de retrogradar, porque é devotamento.

8. Em que a Terra é superior ao mundo ao qual pertence o Espírito do qual acabamos de falar?
- R. Nele há uma fraca idéia da justiça; é um começo de progresso.

9. Disso resulta que, em mundos inferiores à Terra, não há nenhuma idéia de justiça?
- R. Não; os homens aí não vivem senão para eles, e não têm por motivação senão a satisfação de suas paixões e de seus instintos.

10. Qual será a posição desse Espírito em uma nova existência?
- R. Se o arrependimento vier apagar, senão inteiramente pelo menos em parte, a enormidade de suas faltas, então ele permanecerá na Terra; se, ao contrário, ele persistir nisso que chamais a impenitência final, ele irá para uma morada onde o homem está no nível do animal.

11. Assim, pode ele encontrar, sobre essa Terra, os meios de expiar suas faltas sem ser obrigado a retornar para um mundo inferior?
- R. O arrependimento é sagrado aos olhos de Deus; porque é o homem que julga a si mesmo, o que é raro em vosso planeta.


Silése no século XIX


''A morte de um filho deixa uma dor eterna''
Opinião é do psicanalista Jorge Forbes; para psicóloga especialista em luto, muitas mães nessa situação se culpam por continuar vivendo
Laura Diniz
Vazio absoluto. Um nada sem chão, teto ou paredes. Mais que um poço fundo, o fundo sem o poço. A falta de ar. O desespero. A desesperança. Irracional, ilógico, inaceitável. As palavras e imagens mais fortes não são capazes de definir, na opinião de especialistas ouvidos pelo Estado, o luto de uma mãe que perde um filho.
"A morte de um filho deixa cicatriz indelével, uma dor eterna", explicou o psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes, presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana. "É a pior situação humana, não há perda maior. Não tem nada de simbólico para a pessoa a elaborar essa perda. Você morre junto mesmo!"
A empresária Elizabeth Cabral, de 54 anos, fundadora da ONG Dor de Mãe, disse que, provavelmente, a bancária Ana Carolina Cunha de Oliveira, de 24, ainda não realizou a perda da filha, Isabella, de 5. "Está tudo muito recente. Ela deve estar sendo muito assediada, o País se movimentou em volta disso", afirmou Elizabeth, que perdeu um filho numa cirurgia malsucedida há oito anos. Segundo ela, a ficha demora muito para cair - já viu casos de um ano -, mas o tempo varia de mãe para mãe. "Eu segui esperando por um bom tempo. Fazia a comida preferida dele, limpava a casa com o desinfetante com o cheiro que ele gostava, não tirava o terno no armário, lavava o tênis. Aos poucos, fui tomando consciência de que meu filho não voltaria."
GRADAÇÕES DO LUTO
Em termos técnicos, chama-se trabalho do luto, segundo Freud, a atividade que a pessoa realiza quando perde alguém querido. "Para Freud, o ser humano não é um ser de dois braços e duas pernas. É como se fosse uma ameba com vários braços e pernas que nos conectam com as pessoas do mundo com maior ou menor intensidade", explicou Forbes. Quanto mais difícil for colocar amor em palavras, mais forte será a conexão e mais dolorosa, a perda. O trabalho de luto é a recolocação desses "braços e pernas" que ficaram soltos em outras pessoas e ideais. Ocorre após um tempo de recuo sobre si mesmo, depressão ou melancolia.
Segundo Forbes, o luto dura habitualmente de dois a seis meses para pessoas não muito próximas. No caso de filhos que perdem os pais, leva mais de um ano quando a morte é imprevisível. A dificuldade em lidar com a perda é maior entre 5 e 15 anos de idade, quando a pessoa ainda está constituindo a identidade. "Se for antes, fica mais fácil de substituir; depois, já se tem recursos para trabalhar o luto."
Se a morte dos pais é natural, decorrente da velhice, a dor é amenizada pela previsibilidade. "O filho vai se preparando durante toda a vida para a perda dos pais. O trabalho de luto é constante. Ele vai constituindo outra família, repete nomes de antepassados nos filhos, muda de posição em relação aos pais - passa a ser provedor -, começa a falar de herança etc." A perda vai, então, se transformando em memória.
O mesmo processo ocorre quando pais perdem filhos de forma previsível. "Ao longo de uma doença do filho, por exemplo, a dor dos pais é terrível, mas haverá elaboração. O luto começa no dia do diagnóstico e eles iniciam a substituição da presença pela memória", explicou o psiquiatra.
Por ser "antinatural", a morte imprevisível do filho é a que mais desestabiliza o ser humano. Nesse caso, o processo de substituição da presença pela memória e de recolocação no mundo fica muito mais lento e doloroso porque os pais não conseguem lidar com seus sentimentos. "A pessoa, nos momentos imediatamente posteriores à perda, percebe abaladas suas sensações de segurança, esperança, entusiasmo e previsão de futuro - o popular ?tô sem chão?. Paradoxalmente, essas são as ferramentas para o trabalho de luto. Os pais ficam num vazio absoluto."
Elizabeth conta que muitas mães acabam se sentindo "ETs" porque não conseguem lidar com a dor e o mundo. "O sofrimento pode ser expresso com desespero, alienações, ou sintomas de enlouquecimento. Muitos pais ficam presos à presença do filho e a recuperam em um outro mundo", explicou Forbes.
A psicóloga Gabriela Caselatto, doutora em luto materno pela PUC-SP, afirmou que a perda para a mãe é mais dolorosa que para o pai, pelo que o filho significa na vida dela. "Representa questões de infância, identidade pessoal, desempenho como mãe e expectativas de futuro que se cria em relação ao filho, que é continuidade da vida dela."
Segundo Gabriela, após a perda, as mães sentem muita culpa. "Por sobreviver, já que o filho, de forma antinatural, morreu antes dela; pelos cuidados que imagina que poderiam ter impedido a morte dele e por sentir prazer na vida depois da morte de um filho."
Outro drama enfrentado pelo casal após a perda é a dificuldade em conviver. Segundo a psicóloga, pesquisas indicam que 80% dos casais que perdem filhos se separam. "Os dois não conseguem conversar. Se o marido não quer falar porque dói e a esposa precisa falar porque ajuda na dor, um incomoda o outro."
Elizabeth contou que, após a morte do filho, fica com o coração mais apertado quando vê uma família com pai, mãe e todos os filhos por saber que nunca mais terá sua família junta novamente. "Não existe ex-mãe nem ex-filho. Vou deixar de pensar no meu filho só no dia em que for calada pela morte."
O ESTADO DE S.PAULO - Domingo, 13 de Abril de 2008 Versão Impressa